domingo, 28 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 09, 2004

"Amélie", por Klatuu Niktos
Klatuu, bem conhecido dos comentadores habituais do blog, pediu-me que publicasse este conto (ou episódio?) da sua autoria. Espero que gostem.

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Um conjunto destes relatos só poderia ter por título "Diário De Um Vampiro", a este relato isolado só posso intitular "Amélie".


[Tradução. Original em francês.]


França, 8 de Maio de 1704, condado de … … … .

Há três noites enviei Amélie à cidade por causa do livro que mandei vir da Holanda sobre construção de lunetas. Ontem Amélie não voltou e quando saí para a noite encontrei-a na floresta, assassinada, violada e com o corpo já meio devorado pelos lobos. Não pude deixar de sorrir da inevitabilidade do destino e do meu capricho. Faz um ano que Amélie se tornou a minha serviçal, deparei-me com ela junto ao regato, cercada pela alcateia, tentando defender-se com um ramo verde, mal ferida num ombro e numa perna e, na altura, salvei-a, nem sei bem porquê. A verdade é que odeio lobos e, depois de ter morto dois deles e os restantes terem debandado, seria ilógico tornar-me eu o carrasco daquela criança que tinha roubado à morte, mesmo que o seu sangue fresco e doce me inebriasse a vontade. Além do mais não preciso de disputar carne aos lobos!
Ergui-a nos braços e ela agarrou-se muito a mim. Não chorava, apenas tremia e murmurava sem nexo. Era uma criança do povo com doze anos de corpo mirrado por uma ascendência de alcoolismo, fome e promiscuidade. O seu rosto era uma caricatura da miséria. Magro, de nariz esborrachado, as maçãs do rosto salientes e sempre avermelhadas, os dentes mal implantados, com uns olhos pequenos sempre perplexos. Amélie não passava de comida para lobos e o mundo tinha decidido o seu destino logo ao nascimento, mas levei-a para o pavilhão. Deitei-a, e procurei entre as coisas do alquimista e nos seus preciosos livros os sais e a sabedoria com que lhe tratei as feridas. As feridas cicatrizaram depressa e sem pus e Amélie ficou ao meu serviço. O Conde achou natural que eu tivesse uma mulher à mercê dos meus vícios, ainda que feia e sem malícia. Ele mesmo me teria dado as mulheres todas da aldeia, se eu assim o desejasse. O Conde tinha em mim um aliado que valia bem o seu peso em ouro.
Amélie passou a habitar esta lúgubre casa comigo, esta casa que tinha assistido à morte do seu último hóspede, apunhalado pelos esbirros do Conde, que atribuiu umas febres que teve à magia do seu anterior protegido neste pavilhão decadente. A criança feia era demasiado ignorante para entender que coabitava com uma sombra, depressa se acostumou aos meus hábitos, predestinada por uma linhagem nascida para obedecer, mas passou a chamar-me "Rei dos Lobos". Nem achei isso insólito, ela era como um gato, um ser inútil com quem eu partilhava displicentemente esta toca de pedra. Os gatos produzem estranhos e incompreensíveis sons e também Amélie, que diz coisas tontas e canta, sem motivo, canções camponesas.
Nunca a vi triste. Dizia que era muito feliz ao lado do Seu Senhor Rei dos Lobos, que a tratava muito bem, como uma filha, e que, quando ela casasse, lhe daria um dote. Era uma criatura singular, fazia parte das pequeníssimas e insignificantes coisas do mundo, como as moscas que se acumulavam nas janelas ou as mínimas flores silvestres que ela apanhava nos campos, que juntava em ramos e espalhava pelas duas salas e a antecâmara do pavilhão. Raramente a via, a não ser ao crepúsculo, quando precisava de lhe falar, mas muitas noites Amélie esperava-me, quase vencida pelo sono e beijava-me as mãos e dizia-me para eu punir todos os lobos maus e chamava os seus patéticos deuses em minha protecção. Por vezes o sono derrotava-a e dava com ela aninhada no tapete junto à lareira e, nem sei porquê, levantava-a e estendia-a no seu leito e era então que a fome de provar o seu sangue era mais forte, olhava-a por um momento e depois saía para a noite.
Hoje o Conde organizou uma batida na floresta e encontrou os assassinos de Amélie. O bando de salteadores há semanas que aterrorizava as aldeias. Um foi morto na refrega e aos três que foram capturados ordenou o Conde que fossem esfolados vivos e depois mandou cortar a cabeça aos quatro, que fez espetar em postes, e os corpos foram esquartejados e dados aos cães. Dos dois que escaparam coube-me a mim persegui-los, não fosse eu o cão de caça preferido do Conde! Tinham fugido em direcção às colinas e por todo o trajecto senti o seu cheiro fétido, mescla de suor, sangue e medo. Quando um valado os separou lancei-me sobre o último, o outro não veio em sua ajuda, antes incitou a montada com gritos e bastonadas da espada. Aquele caiu de bruços e vendo que já não conseguia montar de novo, porque o cavalo se afastava em pânico, virou-se para mim e decidiu enfrentar-me, resolutamente, como só os néscios podem.
Era um brutamontes com mãos e ombros de lenhador e nem por um instante lhe ocorreu render-se, o seu parco entendimento privava-o de perceber o que tinha pela frente e com um urro desferiu uma estocada que me atravessou um braço. Permaneci imóvel a olhá-lo. Por estranho que pareça não me importo de ser ferido. Apesar de imortal eu posso sentir a dor física, a única dor que posso sentir, e a dor traz-me memórias. O homem tinha mais ímpeto que engenho e a segunda estocada mal me roçou. Parti-lhe o pescoço, soçobrou a meus pés como um capote atirado para o chão, e alimentei-me dele.
O sangue não é apenas vida, é também alma. A podridão, a crueldade cega e ávida, a sujidade do seu corpo em cima do corpo moribundo de Amélie, a escuridão de toda uma vida sem desígnio, os crimes, os roubos, os lugares, as vítimas, as emoções elementares, comer, fornicar, rir, invadiram o meu ser. Mesmo sabendo que estou mais próximo das feras que dos homens, como não poderia sentir-me superior a ambos? Se eu mato é porque faço parte do códice do mundo e pertenço ao ministério superior da morte, é em mim que terminam todas as ilusões de poderio e a majestade do tempo afirma o seu reino, nunca me sinto perverso, nunca me deleito ou regozijo, sou o decreto vivo que lembra às criaturas que o pó as exige e refreia e é tudo.
A sombra rápida no encalce de um homem, não era mais um vampiro, era o Rei dos Lobos, o vingador de Amélie! O escuro da noite era como um rio sobre cujas águas eu corria. O foragido tinha-se apeado no sopé das colinas e tentava escapar por entre a vegetação densa. Rodeei-o e a noite rodou comigo. Dentro do antiquíssimo silêncio que liga o caçador e a presa o homem deteve-se, ergueu a espada e virou-se de repente para mim. Nesse olhar todas as suas convicções se desfizeram como fumo, a vida era um inferno premeditado e tudo era falso. O seu rosto começou a transfigurar-se e abanava a cabeça, incrédulo e demente. Já estava morto e sabia-o. O Conde tinha-me informado que o chefe do bando era versado na arte da guerra e um exímio esgrimista, sabia ler e tinha viajado, um burguês caído em desgraça.
Fez menção de se defender, mas todo o seu corpo tremia e o rosto, cada vez mais transtornado, revelava agora a caveira oculta que sempre tinha espreitado aquele dia, o último, o dia do horror absoluto em que o nada abriria as mandíbulas por sobre o saco de fel que era a sua alma. Com um gemido largou a espada e ajoelhou-se, uivava e chorava e pedia perdão e pedia à Virgem! Aquele triste e nojento pedaço de carne, que nada tinha visto de sagrado na inocência de Amélie, invocava agora um folhetim de judeus devorado pelas eras. Com as garras da mão esquerda ceguei-o de um golpe.
O homem tombou e soluçava alto, abençoava-se e maldizia-se, ora erguia o tronco ora rastejava de lado como uma cobra espezinhada e com os dedos rasgava a terra. Porque chorava sem olhos acreditaria que uma qualquer eternidade o esperava em vez do tenebroso vazio sem fim? Com a boca cheia de sangue e de lama sentou-se e a língua saiu-lhe para fora num ululo sem nome. Que patética espécie é a humanidade! Agarrei a espada do chão e trespassei-lhe o peito.
Deixei-o ali, para que as feras esfaimadas construíssem a sua eternidade, e trouxe comigo, pela rédea, a montada de Amélie, um presente do Conde que eu tinha posto ao seu dispor. Nunca me sento num cavalo, a farsa de partilhar o mundo com os homens não me leva a tanto, nenhum propósito teria montar um animal que é menos veloz do que eu. A noite corria a meu lado e parecia contente. Amélie estava vingada.
Pelo caminho os lobos e os mochos espreitavam-me e mais de uma vez tive vontade de atacar aquele alazão branco, de sentir-me invadido pela inconsciência dos brutos e a sua vida mortal. Acho as bestas superiores aos homens, têm uma pureza de pedra e não conhecem a culpa. Entre os livros do alquimista há um de que gosto particularmente, um com gravuras de animais do país dos cafres, para além do oceano. Gostaria de ser um leopardo e não haver nada em mim que entendesse o homem, essa doença de pele do mundo que espalha a guerra pelas terras e pelos mares. A sua única utilidade é justificar a minha existência e confirmar o meu destino.
Pensava no sangue do cavalo, mas também no sangue de Amélie. O sangue de Amélie a ensinar-me a cantar canções camponesas e a vaguear pelos prados, leve como a brisa, e achar isso belo. Quando cheguei ao pavilhão sentei-me no alpendre, virado para o sol nascente. O dia fechava-se para mim e o tempo fechava-se sobre estes ferozes eventos. A morte estende o seu domínio sobre todos os sonhos e eu, seu servo, só poderia aquiescer. Tudo seria devorado, este pavilhão lúgubre, estes dias azedos, este Conde cruel amado pelo povo. Eu continuaria e só dentro de mim a lembrança do que se passou aqui teria o seu epitáfio, nos infindos rolos da minha memória qual vasto cemitério, onde, por entre os crânios, um pobre ramo seco de flores silvestres seria a breve vida de Amélie.
Nos escritos que deixou, o alquimista delira que os orbes acima de mim são as raízes de múltiplos seres. Se assim fosse, que terrores infindos esconderia a escuridão dos céus?

Klatuu Niktos

Publicado por _gotika_ em 11:40 PM | Comentários: (28)


“You could call me a Goth, I think”

(Lestat:) “My longing for the microphone is gone, but I won’t give up the fancy clothes. I can’t give them up. I’m the prisoner of capricious fashion and am actually quite plain tonight. I think nothing of piling on the lace and the diamond cuff links, and I envy Quinn that snappy leather coat he’s wearing. You could call me a Goth, I think” He glanced at me very naturally, as though we were both simple humans. “Don’t they call us snappy antique dresses Goth now, Quinn?”
“I think they do”, I said, trying to catch up.

“Blackwood Farm”, Anne Rice


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Queridíssimo Lestat, ser gótico não está na roupa que se veste. É certo que o visual é muito importante para nós góticos - e não preciso de lhe explicar porque sei que nos compreende perfeitamente - mas não há nada mais blasfemo que uma criatura insegura e solitária começar a vestir-se “assim” para se sentir integrada durante os anos de caça à queca.
Bem sei, Monsieur de Lioncourt, que a sua caça é outra. Quem sou eu para criticar as necessidades alheias?... E compreendo que só no meio de nós a sua estranheza de aparência passe despercebida aos simples mortais, e que isso lhe deva ser muito conveniente.
Mas não esqueça, senhor Lestat, que os verdadeiros góticos - um pouco à semelhança da sua “gente” - também se reconhecem uns aos outros à distância. Parece que estão sempre distraídos, mas garanto-lhe que estão a controlar tudo e mais alguma coisa.
Não serão as rendas e os botões de punho que o salvarão, Lestat de Lioncourt. Está avisado: pode parecer igual a nós para os outros todos, mas nós sabemos quem é quem. Não passará despercebido. O verdadeiro gótico sabe o que é pó de arroz branco e o que é pele. Tenha cuidado. Use o pó de arroz. Não custa nada.
Mas não desista já! Apesar da nossa inegável frieza para com estranhos, nunca o movimento gótico deixou de acolher um irmão espiritual. O caminho é árduo e implica duras provas... Anos e anos de música e noite, de noite e música. Muito dinheiro gasto em roupinha. Muitos acessórios, muitos sapatos, muito verniz. Muitas horas à frente do espelho a pintar a cara e a arranjar o cabelo. Mas tempo é o que não lhe falta, deveras? Insista. Não desista. Uma destas noites alguém falará consigo. Se tiver sorte, talvez até um verdadeiro gótico lhe dirija mais do que três palavras e dois olhares furtivos.
Não espere que lá por ser um verdadeiro vampiro os góticos o acolham de braços abertos. Era só o que faltava. No movimento gótico são todos iguais: brancos e pretos, homens e mulheres, bruxas e vampiros. São muitos anos a bater à porta para entrar. É muito eyeliner.
E lembre-se, senhor “eu sou o vampiro Lestat”, gótico a sério é o Corvo porque está morto. Gótico a sério é o seu amigo Louis, que nunca disse que é gótico e se vai chorando da vida entre duas dentadas.
O tempo só recompensa os perseverantes. E a recompensa também não é nada de jeito. Por isso é que a maioria dos candidatos a gótico acaba por ir parar às Docas.
A recompensa é apenas uma noite atrás da outra. Poucos são os chamados e menos ainda os escolhidos. Só se sente em casa quem está em casa.
Se é a sua casa, entre à vontade e sente-se onde quiser.
O Gótico abraça quem abraça o Gótico.

Publicado por _gotika_ em 12:32 AM | Comentários: (16)

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