quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Wuthering Heights" (O Monte dos Vendavais), por Emily Brontë

Culpo o Círculo de Leitores. Quando era miúda éramos sócios do Círculo de Leitores. Todos os meses a senhora do Círculo de Leitores trazia um catálogo novo. Compravam-se dois livros por mês para continuar a receber o catálogo.
Comprei as coisas mais incoerentes, na infância, graças ao Círculo de Leitores. A única coisa que me guiava, na escolha, porque obviamente eu era a dona e senhora da escolha ou não se tratasse de livros!, era mesmo a pequena sinopse (palavra que obviamente eu não conhecia, por isso seja eu honesta e corrija com:) o pequeno resumo de três linhas. O sítio, no catálogo, onde vinham os livros também era importante porque me guiava quanto ao estilo. Não que eu soubesse o que era um estilo, nem que tivesse alguém minimamente capaz, em casa, e se calhar até na escola, para me guiar. Portanto, o que me guiava era o resumo e o sítio onde vinham os livros no catálogo. Depois, mandava vir, lia, achava bom ou não. Mandava vir mais. Confesso que aquilo que procurava, no catálogo, já nessa altura, eram os livros para meter medo. Não tive grande sorte. Era um catálogo familiar. Não me lembro de ver por lá nenhum "Exorcista". Ou se calhar até lá estava, mas no sítio/página para adultos, e não me deixavam mandar vir livros dessa página.
Ainda fui enganada uma vez, quando mandei vir "O Cão dos Baskervilles" porque o resumo dizia "cão fantasma". Toda contente, achei que tinha adquirido um livro de meter medo. Grande desilusão. Ainda hoje não suporto Sherlock Holmes e deve ser por causa desse trauma de infância. (Para quem não sabe, não era um cão fantasma, era um embuste. Eu também fui engrupida, como os Baskervilles.)

Como dizia, culpo o Círculo de Leitores por ter deixado escapar "O Monte dos Vendavais". Estava no sítio dos romances "de amor" (como eu lhes chamava) e o resumo dizia "clássico romântico". Chamem-me cínica, chamem-me alma antiga, chamem-me tudo, mas já nessa altura eu tinha aversão aos romances a que se convencionou chamar "cor-de-rosa". Não que eu soubesse que se chamavam "cor-de-rosa" mas a aversão já rebentava nas minhas entranhas. Ora, foi mesmo nessa página que eu encontrei, diversas vezes, "O Monte dos Vendavais", clássico romântico. E já nessa altura a palavra "romântico" tinha para mim a conotação fétida que acompanha tudo o vem impregnado de mentira. Porque eu sabia que "e viveram felizes para sempre" era mentira. E eu não queria ler mentiras. Eu queria ler livros de meter medo.
O medo não é mentira.

Passaram-se muitos, muitos anos. Aqui, a minha história é invulgar porque a criança cínica tornou-se uma adolescente mais tolerante ao romantismo (dos outros). Nesta indulgência, apreciei a canção "Wuthering Heights" da Kate Bush, sempre convencida, porém, apesar de já esclarecida quanto aos estilos novecentistas, que "Wuthering Heights" era daqueles romances de época, muito sentimentais, muito delicados, escritos por aquelas autoras sonsinhas que prometiam danças nos bailes de sociedade. Tipo "Orgulho e Preconceito". Devo confessar que a confusão com Jane Asten não ajudou a melhorar a minha primeira impressão de "Wuthering Heights". Começando logo pelo título em português: "O Monte dos Vendavais". Criou-se uma ideia, na minha cabeça, de uma fusão de telenovela brasileira com romantismo inglês vitoriano. Em suma, algo de que fugir com todos os pés.

Passaram-se mais uma dezena e tal de anos. Começou-me a incomodar quando ouvi uma canção da cena gótica, dos Diva Destruction, chamada "Heathcliff". Eu conhecia o nome, Heathcliff, da canção da Kate Bush, e mais uma vez os vendavais me perseguiam. Começou-me a incomodar que existissem duas canções tão boas inspiradas num livro que eu julgava tão mau. Por essa altura, a curiosidade desfez o meu orgulho e preconceito e hesitantemente, assim de sobrancelha erguida e tudo, arranjei o livro.

É realmente assustador o que o preconceito pode destruir... e o que o bom gosto pode curar.
Confesso que não sabia muito bem o que ia ler. Prefiro sempre não saber. Mas já começava a desconfiar que Kate Bush e Diva Destruction não podiam estar ambas enganadas. Havia ali qualquer coisa. Bem, o tal Heathcliff (depois de conhecer a figura o nome até deixa de parecer tão foleiro) não é o herói "romântico" que pede danças a meninas nos bailes da sociedade. Heathcliff deve ser, pelo que sei da literatura, um dos primeiros e melhores anti-heróis que já conheci. E por não ser "romântico", Heathcliff é o género de homem por quem as mulheres suspiram. O género de homem sobre quem as mulheres escrevem livros e canções. Ainda hoje, no século XXI. Tiro o chapéu a miss Brontë. Não é para qualquer um. Não é qualquer Romeu, nem sequer o de Shakespeare, que inspira assim a compaixão e atiça o perigo na alma feminina.

A história começa com um forasteiro perdido que por força do mau tempo tem de pernoitar em Wuthering Heights, a casa onde tudo se passou. Durante a noite, uma criança fantasma bate à janela e pede para entrar. O forasteiro fica de cabelos em pé e jura nunca mais voltar.
[Mas o forasteiro não tem de se preocupar. Esta criança fantasma não torna a aparecer e, na verdade, é um elemento gótico que não tem grande justificação quando inserido nesta narrativa. Ela é Cathy, mas Cathy, quando morreu, já não é uma criança. Porque aparece ela, a princípio? Teria a escritora sido tentada a enveredar pelo sobrenatural mas recuado pela mesma razão por que Walpole não publicou "O Castelo de Otranto" senão sob pseudónimo, porque se escrevia ainda segundo o preconceito de que todo o sobrenatural era vergonhoso e qualquer evento anómalo devia posteriormente ser explicado por causas naturais? Como o cão dos Baskervilles, não um cão fantasma mas um embuste?... Por alguma razão, a autora arrependeu-se de seguir por aí, mas também não retirou a improvável Cathy fantasma. Incorrendo, desta forma, e se calhar involuntariamente, noutra originalidade muito à frente do seu tempo: o fantasma-eco que permanece, como uma fita magnética, reproduzindo permanentemente os eventos marcantes onde eles aconteceram. Só miss Brontë poderia responder a esta questão.]
O forasteiro foge, mas fica curioso, como o leitor, porque não é ele outra coisa senão o leitor, e coloca perguntas à velha ama de Cathy e Heathcliff, ela própria a narradora, sobre que acontecimentos teriam produzido tão especial fenómeno. A velha ama conta. Como Cathy e Heathcliff foram criados juntos e inseparáveis. Como Heathcliff a amava. Como Cathy o amava também mas casou com um homem rico para poupar a ambos da pobreza. Como Heathcliff a odiou e desprezou o seu sacrifício e regressou ele próprio um homem rico e cheio de rancor. Como Cathy morreu de parto. Como Heathcliff odiou ainda mais toda aquela família rica que lhe roubou Cathy e que na infância lhe chamara "cigano" por ser pobre e escuro. Como usou o seu próprio filho, um deles, para os arruinar. Como através do ódio se arruinou a si próprio. Como alcançou finalmente o que ambicionava, um lugar ao lado de Cathy... E como o planeou e o obteve.
Cabe ao forasteiro, ao leitor, julgar em Heathcliff a vilania ou o mérito. Aqui não há lições de moral, nem bom senso e sensibilidade.
Esta é uma obra Romântica, antes de o romântico se ter tornado cor-de-rosa, de quando o Romântico era negro, de quando a paixão era rubra. Merecia uma página toda preta no catálogo. Ninguém viveu feliz, muito menos para sempre.




1 comentário:

Fashion Faux Pas disse...

É sem sombra de dúvida um dos meus livros preferidos - aliás soube que o meu marido era a pessoa com quem eu queria realmente construir algo no dia em que inusitadamente lhe dei este livro, para ele me conhecer melhor. Tive a sorte de o ir buscar á estante do meu avô depois de ler a Jane Eyre - tinha uns 9 anos e estava a viver em casa dos meus avós por estar imobilizada com uma perna partida, o que fez maravilhas pela minha leitura - e ter fixado o sobrenome Brontë, que tinha visto noutro livro, o tal do Monte dos Ventos UIvantes na tradução que o meu avô tinha. Sabes que o Heathcliff e o Mr. Rochester é suposto serem baseados no mesmo homem, que foi alvo da paixão das duas irmãs? Diz que escolheu a mais velha... Não lhes vejo grandes semelhanças, entre os dois personagens, o que me faz acreditar que realmente seria verdade terem como base a mesma pessoa real, e não um ideal ficticio comum ás duas irmãs, todos nós percebemos a mesma pessoa de maneiras diferentes. Mas Sherlock Holmes rula. Adoro. Papei os livros todos na mesma altura - 3 meses sem ir á escola era uma vida, e dava para ler tudo...