quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"O Historiador" ("The Historian") por Elizabeth Kostova


Vlad Drakul, o Empalador, príncipe da Valáquia (retrato)

Não, eu não acredito que se nos dias de hoje Vlad Drakul fosse vivo, ou morto-vivo, que é a mesma coisa, se tornasse num estudioso rato de biblioteca. Custa-me até conceber como pode alguém ter tal ideia, excepto se a autora andou a ler Anne Rice e confundiu Drácula com o vampiro Marius, esse sim, um coleccionador, um historiador, um erudito. Mas o vampiro Marius era um civilizado e educado cidadão do Império Romano, não um sociopata que ficou infame para a História sob o nome de o Empalador. Tamanha mudança de personalidade, não obstante os 500 anos do vampiro, ou nunca aconteceria ou teria de ser muito bem explicadinha - e nisto a autora não convence o leitor familiarizado com a carreira do sociopático príncipe da Valáquia, ao lado do qual, devido à sua desumana crueldade, o próprio Hitler nem parece um mau rapaz.
Posto isto, que de alguma forma destruiu a verosimilhança da personagem e estragou o usufruto da história, este livro tem momentos muito interessantes, nomeadamente a forma como a personagem principal se vai apercebendo do percurso pessoal do seu pai, bem como de outros historiadores envolvidos na perseguição a Drácula... e o fim que estes tiveram. Quem se interessar por História encontra aqui uma grande oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos sobre o Império Otomano, os inimigos de Drácula e invasores de Constantinopla (de que não se fala no Ocidente de acordo com a sua importância, e que se revela no momento político mundial uma boa fonte de compreensão para entender os conflitos que ainda hoje existem com o Islão).
Outra das características deste livro são as muitas viagens dos personagens (e as inescapáveis descrições que estes fazem delas), que nos leva a desejar que o livro seja brevemente posto em filme... para ver as paisagens!, o que da minha parte é possivelmente a pior crítica que posso dirigir a um livro. Um bom livro, com ou sem descrições, não precisa de um filme que o ilustre. Este, infelizmente, precisa, apesar das descrições palavrosas que me deixaram exactamente na mesma: passa lá para a acção e larga a foto para os directores artísticos.
Por falar em acção, quando a história se afasta da comovente relação entre o pai e a sua filha, e se aventura por arrebates de adaga e pistola, o resultado é fraco, no pior sentido do hollywoodesco, e nota-se ali que houve uma piscadela de olho ao ensaio de um argumento... e não de um livro, o que mais uma vez não é abonatório para o livro.
Não quero aqui revelar o fim, porque é sempre indecente fazê-lo, mas não posso deixar de acrescentar que também este me pareceu hollywoodesco, um fim feliz e "inócuo" . -- Lá está, não posso justificar para além disto de modo a não prejudicar futuros leitores! -- Posso no entanto garantir o seguinte: o livro promete muito mais do que oferece, e teria ganho bastante em abandonar os clichés e enterrar-se, tão subtilmente como começou, num final sombrio, soturno, um final como o som oco do fechar de uma tampa de caixão.
Apesar das críticas que tenho a apontar, a nota é positiva, e este é sem sombra de dúvidas um bom livro (não tão bom como as críticas o anunciam, mas um bom livro) que interessará a todos os amantes de vampiros e de Drácula em particular. Pena que a autora não tivesse conseguido transformá-lo, apesar da tentativa de sair do estereotipo, numa personagem "real", de "carne e osso", ficando-se pelo limitado "monstro" a duas dimensões que nunca chega a convencer o leitor treinado.

domingo, 4 de outubro de 2009

Odeio a realidade!

Estava muito bem a ler "O Historiador", de Elizabeth Kostova, completamente embrenhada e aninhada no manto de ficção draculiana que me afasta a mente da realidade, quando leio estas palavras, pronunciadas por uma personagem húngara:

«-A minha tia trabalha no Ministério do Interior da Hungria desde 1948, e é uma figura muito importante. Consegui as minhas bolsas de estudo graças a ela. No meu país, não se faz nada sem um tio ou uma tia. (...)»

Foi assim, tcha-pum, back to reality!

E continua! Diz um personagem americano:

«-Tenho a impressão de que ela vai ter de fazer milagres para me fazer entrar na Hungria e evitar-nos problemas. (...)»
«- Ela é especialista em milagres. É por isso que não estou na minha terra a trabalhar no centro cultural da aldeia da minha mãe.»

Oh, como eu abomino a realidade!
Este foi, efectivamente, um momento de terror.
Achei engraçado partilhar, para vos estragar o dia também. :)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O momento político

Sempre me pareceu que 2009 ia ser um ano divertido e isto até está a aquecer para o final. Prevê-se um 2010 ainda mais hilariante.
Confesso que não achei piada nenhuma à reeleição do Pinóquio -- peço desculpa, senhor engenheiro Sócrates, porque agora há que ter cuidado e piar baixinho -- mas foi esta a decisão dos 36% dos eleitores que foram votar, tirando os 40% que nem lá puseram os pés, sinal que estão muito satisfeitos com a situação e que aprovam pois "quem cala consente" e por mais argumentos que esgrimam nada me arranca daqui, e em democracia é assim que se passa e há que acatar.
Pus-me a pensar quem são estes 36%. Eu e mais gente, porque algo aconteceu. Logo no dia seguinte, no meu local de trabalho, onde se fala mais de carros e coisas das revistas cor de rosa e outras que interessam ainda menos, estava toda a gente a falar de política. Cada um tinha votado num partido diferente, e pôs-se a questão: "Mas afinal quem é que votou PS?!"
"Eu votei PS!", disse uma colega corajosa que estava claramente em minoria e fiquei bastante surpreendida. É que além de corajosa ela não é parva nenhuma, tem uma inteligência acima da média, e ao contrário do português comum está bem informada sobre questões políticas, a ponto de ter organizado um abaixo assinado contra o Código do Trabalho, razão precisamente pela qual votei Bloco! Podem imaginar, pois, a minha perplexidade por ela ter votado exactamente no partido que o lançou e aprovou! Perguntei-lhe, seriamente, pensando que ela brincava:
"Estás com vontade de ficar aqui a trabalhar horas extraordinárias sem serem pagas como tal, para um banco de horas que a empresa te devolve quando bem lhe apetecer (género "hoje não há trabalho vai-te embora, volta amanhã, se tens compromissos azar")?!"
Resposta:
"Na!"
Queria ela transmitir, naquele eloquente "Na!", que as coisas não se iam passar assim. Se calhar porque não acredita realmente que os direitos dos trabalhadores, tão dificilmente adquiridos, possam ser tão facilmente violados neste autêntico retrocesso civilizacional que é o Código do Trabalho.
Pus-me a pensar ainda mais. Até porque não é o género de pessoa que não tenha logo dado pela "coincidência" de o caso dos submarinos ter aparecido novamente, assim do nada, mal o Paulo Portas arranca 10% e faz tremer o Sócrates -- porque é o único que o consegue, e bem podem ir para cima dele com submarinos e documentos secretos subtraídos aos arquivos da Defesa Nacional (na volta o gajo levou-os para casa como recordação, não me admirava nada e se calhar até fazia o mesmo, por muitas e variadíssimas razões e se calhar bem mais tenebrosas do que qualquer motivação que tivesse hipoteticamente tentado o líder do CDS caso tenha verdadeiramente acontecido, no que não acredito sem provas) que para ali vão de carrinho porque é um homem sério e não há ponta por onde lhe pegar. Aliás, só não votei nele exactamente por causa do Código do Trabalho, a que me vi na obrigação de me opor, por muitas lágrimas que tenha chorado a noite toda sem dormir, qual mulher enamorada que desprezada por um irmão vai para a cama com o outro como consolação, "Paulinho! Paulinho! Oh, Paulinho!"
-- Eh, eh! Não. Isto era eu a brincar ao estilo Braganza Mothers. Passo efectivamente as noites sem dormir mas ainda não chegou ao ponto de gritar "Paulinho! Paulinho!". Talvez lá chegue um dia, mesmo sabendo que não faço o tipo de mulher que o cavalheiro aprecia, mas no coração não se manda. --
Dizia eu sobre esta colega, que não é totó nenhuma, e me surpreendeu por votar PS, que me fez dar voltas à cabeça a tentar compreender porquê. Depois compreendi. É o estado de negação. De certa forma, é este o estado em que andamos todos, abstencionistas incluídos, ainda a tentar acreditar em qualquer coisa que adiante, seja o voto seja o protesto.
O estado de negação é poderoso, tão poderoso que, respeitando as respectivas distâncias que não são para brincadeiras, muitos dos judeus que entravam nos campos de extermínio se convenciam até ao final de que iam mesmo para trabalhar.
"Mas papá", diria uma pequenita, "parece-me que não vejo aqui ninguém a trabalhar. Se calhar o que aqueles camponeses que nos faziam sinais para o comboio diziam eram verdade, e viemos aqui para morrer."
"Disparate!", diria o pai, "Os alemães precisam do nosso trabalho. Só nos querem explorar. Não ganham nada em nos matar."
Sempre me fez bastante impressão que esses judeus, em estado de completa negação, tenham acreditado na máquina de propaganda alemã, ignorado todas as evidências, e caminhado alegremente para "os banhos", mesmo depois de assistirem à selecção, à chegada, dos mais "capazes".
O estado de negação é realmente um poderoso mecanismo de defesa psicológico, imediatamente accionado quando o horror é insuportável. Nem todos, no entanto, permaneceram nele até ao fim. Muitos se aperceberam, e deduziram que nada havia a fazer, e que o melhor era deixar os outros nessa doce ilusão até ao derradeiro final.
Trago para aqui este caso limite, salvo, mais uma vez, as devidas distâncias, apenas para ilustrar o meu ponto. Pelo contrário, eu sempre fui daquelas que preferem acreditar no pior. Não só nos vão explorar, como matar, como ainda esfolar! Já é uma sorte que não nos esfolem vivos porque dói menos.
Neste caso, temos sorte, só nos querem de facto explorar. Livra! E assim encontro alguma razão para contentamento. (Será negação também?)
Uma coisa é certa, e surpreendente. Desde as eleições que tenho ouvido na rua os Manéis, à esquina, em grandes debates políticos como já não ouvia desde os tempos da infância!!! "E os submarinos? E o dinheiro?!", ouvi hoje, de um amigo para o outro, em acalorada cavaqueira, quando ainda na semana passada aqueles dois deveriam falar só do Benfica e do Mourinho e doutros que nem conheço.
Será bom sinal? Será sinal de que os tugas começam finalmente a acordar?! Novamente, livra!, que já era tarde!
Por falar em cavaqueira, não há dúvida que nesse caso o presidente fez um grande favor à nação, talvez o único em toda a sua vida, lançando a mais devastadora confusão num comunicado que eu não conseguiria escrever na minha pior bebedeira, do qual não se percebeu nada, mas nada de nada, ah valente também dás no tintol!!! *hic*
O momento político não podia ser mais engraçado, e o folhetim televisivo mais curto, tipo telenovela, para acompanhar todos os dias sempre em grande suspense até ao grande final. Quem fica com quem? Qual dos vilões se safa melhor? Quem é o melhor intrujão? E a resposta à grande dúvida existencial: quem votou no Pinóquio, e porquê?
Se este post parece estranho e nebuloso, sem ponta por onde se lhe pegue, a culpa não é minha, mas do momento que o inspirou. Isto já não é o pântano, é o rodopio do remoinho em direcção ao fundo abismal. A pique.