segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Tradições do Dia de Todos os Santos

À medida que cada vez mais gente adopta tradições alheias na noite de Halloween, tenho-me vindo a aperceber que todos os anos é uma paródia mal feita que envergonharia qualquer norte-americano. Mais vale partir logo do princípio que é apenas mais uma véspera de feriado e deixar de lado as palhaçadas que já não têm graça nenhuma. Aliás, nós, os povos do sul da Europa, temos uma altura específica para as palhaçadas e essa data chama-se Carnaval.
Existem verdadeiras tradições portuguesas que caíram em desuso pela pressa dos tempos modernos. Vou relatar a minha experiência. Recordo-me sempre do dia de Todos os Santos porque recebia uma visita da minha avó que vinha dar "os Santos". "Os Santos" eram geralmente bolos ou quaisquer outras guloseimas que se comiam acompanhadas com jeropiga. Hoje decidi investigar a memória familiar sobre as tradições do Alto Alentejo, de um tempo que já não é o meu e de cujo fantasma apenas persiste a visita da minha avó. Parece que antigamente, no primeiro dia de Novembro, as crianças da aldeia iam de porta em porta a pedir "os santos", que eram sempre guloseimas para comer, mas durante o dia e não na véspera. Não se falava em bruxas. Estas guloseimas podiam ser nozes, passas, marmelos, romãs, e principalmente uma espécie de bolos fintos (levedados) que se faziam para a ocasião, os chamados "bolos dos santos". O dia de Finados, 2 de Novembro, era celebrado com a ida ao cemitério onde se dizia a missa e benzia as sepulturas.
Tudo isto deixou de fazer parte da cultura das cidades. Observei como a vida profissional forçou que a visita ao cemitério passasse para o dia anterior ao dia dos Finados, por ser feriado, mas ainda me lembro dos tempos em que mesmo em Lisboa era uma autêntica romaria, pelo menos até aos anos 80. Depois as pessoas deixaram de ir. A sociedade transformou-se, e esqueceu-de da morte como se tenta a todo o custo esquecer-se da velhice. Os velhos, como os mortos, são agora enfiados num lar, ante-câmara do cemitério, e visitados quando há tempo até ao momento em que são dirigidos à última morada e já ninguém lá volta.
Este materialismo da sociedade, esta cultura do jovem e abandono do velho, este virar de costas à morte é também uma falta de espiritualidade que só pode gerar frutos nefastos. Em princípios do século XXI, voltámos a uma falta de respeito pela dignidade humana que possivelmente nem os nossos antepassados medievais experimentaram. O ser humano só é válido enquanto é jovem e produtivo. A partir dos 40 anos já não é considerado apto para o trabalho e a partir dos sessenta, se adoece e não morre logo, torna-se um longo fardo de mais 30 anos a suportar pelas famílias. Curiosamente, outro dos factores que conduziu a esta situação é de facto o milagroso avanço da medicina que prolonga a vida para uma duração média inédita na História. Estamos mesmo a viver um momento verdadeiramente histórico em que os valores sociais não se conseguiram adaptar ao progresso científico. Vive-se um desequilíbrio entre o que é a vida imaginada e a vida real. Uma alienação perfeitamente formidável e sem precedentes, só comparável a momentos na História em que se quis reconstruir civilizações a partir de pressupostos religiosos ou ideológicos irrealistas (assim de repente lembro-me da cristianização forçada no império romano, do comunismo e do nazismo, mas certamente há mais exemplos). Diz-nos a mesma História que este desequilíbrio não pode durar.
As celebrações do dia de Todos os Santos e dia de Finados, o Halloween ou Samhain, são, como o Natal e a Páscoa, mais uma prova de que a espiritualidade do Homem não é forjada a martelo nem pode ser negada, por muito pervertida que ressurja no decurso dos séculos.

Sabendo que a cultura não volta para trás, não proponho de modo algum o retorno às tradições antigas, mas congratulo-me que cada vez há mais festas de Halloween para as pessoas normais. Acabou-se também a romaria aos locais góticos, qual visita anual ao jardim zoológico. Venha pois, a americanização, e em força!

7 comentários:

Anónimo disse...

Aqui fica o meu testemunho das tradições do dia de Todos os Santos:
Cresci numa aldeia na Estremadura. No dia 1 de Novembro, juntavamo-nos em bandos de 4-6 miudos e corriamos as casas de toda a gente a pedir "pão por deus" munidos de um saco do pão feito de pano. As pessoas davam-nos rebuçados, romãs, broas dos santos, castanhas, batata doce e às vezes 10, 20 escudos ou chocolates dos bons. Não tinha piada nenhuma ir sozinho e se fossemos muitos sabiamos que as pessoas davam menos a cada um de nós. Também já sabiamos quem dava mais e melhores guloseimas. Às vezes tinhamos de ir a casa "descarregar" o saco e depois voltavamos à carga até ao final do dia. Nesse dia nem jantava de tanta guloseima que comia.
Telefonei mesmo agora à minha mãe a perguntar se os miudos ainda vão ao pão por deus e felizmente ainda vão.

the dreamer disse...

Na rua onde eu morava, no Estoril, onde ainda vive a minha mãe, eu e outros miúdos íamos pedir pão por deus na manhã do dia de todos os Santos. E todos os anos, apesar de ser um número cada vez mais reduzido, ainda haviam alguns resistentes, a manter a tradição. Este ano, uma vizinha americana organizou uma festa de Halloween para a criançada toda do bairro, e avisou os vizinhos de que os miúdos iriam pedir doces na noite de Halloween. Na manhã seguinte, ninguém tocou às campainhas a pedir pão por deus...


Yuna

katrina a gotika disse...

Susanamorrison e Yuna: obrigada pelos vossos contributos. Gosto muito da história da cultura. Onde eu cresci, um bairro típico de Alfama, não se pedia "os santos" nem "pão por deus" m,as sim "um tostãozinho para o Santo António", no dia 13 de Junho, dia de St. António. A petição começava umas semanas antes e só terminava na noite do arraial de St. António. Só os miúdos pequenos (até aos 10 anos, não mais) podiam pedir.
A finalidade começou por ser pôr o dinheiro no altar de St. António ou atirá-lo para uma espécie de lago ou bacia de água, em frente ao santo, para pedir desejos de encontrar namoro ou casar com fulano ou sicrano. Mas isso era para os adultos. Toda a gente sabia que o tostãozinho era para nós. Actualmente o tostãozinhho pode ser substituído por um cêntimo, enfim, uma moeda de pequeno valor.
Pelo que percebo, a expressão "pedir pão por Deus" é mais nortenha. No Alentejo pediam-se "os santos".

Ana Oliveira disse...

Quando era criança no dia 1 de Novembro pedia-se o pão por Deus. Hoje em dia vão pedir no dia de Halloween. E se reparares na história do Halloween, não tem nada a ver com aquilo que agora vivemos nesta idade. Festas, bebezainas e droguices. É uma festa espiritual dos Celtas, corrompida pelos cristãos católicos.
Concordo com o que escreveste. A tecnologia avaça a olhos vistos, mas as mentalidades ainda vão bastante atrasadas. Já acham uma pessoa de 60 anos idosa, e na verdade não é (geralmente).
As pessoas hoje em dia vivem para trabalhar e não trabalham para viver (como antigamente).
Antes os velhotes eram sempre muito bem tratados, pois eram sinónimo de sabedoria. Hoje, são enfiados em lares, espezinhados e mal-tratados e ainda vêm gritar bem alto que não há vantagens nenhumas em sermos uma população envelhecida. Concordo, mas também não é razão para se tratar mal os velhinhos, porque eles próprios já contribuíram para a sociedade e já foram jovens.
Também quando ficarmos velhos,não quereremos certamente ser tratados da mesma forma como são tratados os nossos idosos.
Já dizia uma colega minha, que o maior medo dela era envelhecer, pois não conseguiria ver-se ao espelho com aquelas rugas todas.

katrina a gotika disse...

«É uma festa espiritual dos Celtas, corrompida pelos cristãos católicos.»

Mais do que pelos cristão, católicos ou não, é uma festa corrompida por ser mais uma noite de copos. Mea culpa também.

O que dizes sobre os idosos, subscrevo.

Missies Blue disse...

as tradiçoes nao estao assim tao esquecidas. vivo nos arredores de lisboa e em pequena também tinha o hábito de ir pedir o "pao por deus".
aqui ha um ou dois anos, os miudos começaram a vir bater à porta na noite de 31. como nós tinhamos as nossas recordações desta época e o meu irmao mais novo também queria participar, explicamos aos miudos qual a verdadeira tradiçao.
e ainda que poucos, na manha do dia de todos os santos, alguns ja vêm pedir o "pao de deus" :)

nada de especial mas quis partilhar as minhas recordaçoes também, em x d continuar a ler em silencio. o que recebíamos no dia de todos os santos era o mesmo que já enumeraram.
apenas para dizer que a tradição ainda espreita aqui e ali ;)

Filomena Ferreira disse...

Em Tomar existe a tradição nas aldeias, em que as crianças saem bem cedo de saco na mão pedindo "bolinho, bolinho para o seu santinho" e qualquer pessoa que se preze dá com orgulho um bolinho próprio do dia (bolinho de passas e nozes), romãs, nozes, castanhas, guloseima, dinheiro, o que tiver ao seu alcance e é uma cesonra ser-se apanhado sem se ter nada que dar. Depois do almoço é a altura da malta jovem: põe-se a mesa com guloseimas e as raparigas fazem questão de mostrar os seus dotes na culinária. Andam de casa em casa de cada pessoa do grupo. Enquanto os miúdos de dividem em grupos pequenos, os jovens juntam-se todos e depois é beber o vinho novo e outros, normalmente é honra da casa apresentar os licores, a água-pé, o vinho branco tudo de fabrico caseiro e outros mais velhos também se juntam, mas só entre os mais chegados e amigos. Neste dia todas as portas se encontram abertas, para quem quiser conviver, beber e comer.
É mesmo um dia de festa. A tradição ainda se mantém, embora já não com a mesma intensidade até porque as aldeias estão a ficar desertas