quarta-feira, 1 de outubro de 2008

"O Retrato de Dorian Gray" (The Picture of Dorian Gray), de Oscar Wilde

A história é sobejamente conhecida. Dorian Gray foi até incluído como personagem do filme "Liga de Cavalheiros Extraordinários", interpretado por não outro que que Stuart Towsend, o Lestat de "A Rainha dos Vampiros" (e não lhe correu nada mal). A história de Dorian Gray é tão interessante pela acérrima crítica social às elites da burguesia e nobreza inglesas do século XIX (com uma ironia, direi mesmo sarcasmo, e sentido de humor que me faz lembrar o muito nosso Eça de Queirós, e cujas citações mais assombrosas publiquei aqui no último mês), como pelo elemento sobrenatural que rege toda a história (e por elementos sobrenaturais os nossos escritores nunca se interessaram, o que é uma pena).
Dorian Gray é um rapaz oco, fútil e vazio. Acima de tudo, influenciável pelo intelecto superior e hedonista de Lord Henry, seu amigo, que o convence da sua beleza e da sua importância e o torna não apenas vaidoso como, ao longo da sua vida, cada vez mais perverso e insensível ao sofrimento dos outros. Lord Henry, neste livro, funciona como o Diabo, o tentador, que incute no jovem o valor verdadeiramente satânico do culto da invidualidade e do prazer, mas sempre através de subtis sugestões e filosofias, sem nunca poder ser acusado pelos crimes que, debaixo da sua influência, Gray acaba por cometer sem um pingo de remorso, incluindo o assassínio a sangue frio de um dos seus melhores amigos. Poder-se-à perguntar se o jovem Dorian Gray, antes de cair nas "garras" do seu luciferino mentor, era efectivamente tão oco e fútil como fazia crer, ou se havia já nele a semente ruim da maldade só à espera de um jardineiro que a fizesse florescer em frutos do Mal. Esta é uma das muitas interrogações morais que Oscar Wilde vai colocando ao longo da obra, cuja grande metáfora é o retrato, um retrato verdadeiro, não simbólico, do jovem Dorian Gray, onde por magia se projecta toda a maldade de Dorian enquanto este permanece belo e jovem para sempre. Uma espécie de pacto com o diabo sem que o diabo seja necessário.
Na sua grande inteligência, o que Oscar Wilde faz é desmascarar todos os outros "retratos escondidos" atrás da hipocrisia de uma sociedade em que a imagem vale mais do que o Ser.
Nunca uma obra foi tão actual.

3 comentários:

Vampiria disse...

Um dos meus livros favoritos, senao, o meu favorito...

Tomás disse...

Também gostei muito do livro, e gostei de ler os extractos que foste escrevendo estes dias.

Gostei de ler a simplicidade com que mediste todas as dimensões do livro com a tua régua moral, com a qual julgar o bem e o mal é tão simples quanto medir o diâmetro duma melancia.

Se O DG é "oco, fútil e vazio", como descreverias o LH? E se o culto do prazer próprio sem olhar ao custo em sofrimento alheio é "verdadeiramente satânico", então o inverso - o culto do prazer alheio sem olhar ao custo em sofrimento próprio (sacrifício extremo) - será angélico? E aquilo que alguns chamariam justiça - dividir o prazer e o sofrimento entre o próprio e o alheio (tenhamos todos uma parte igual de ambos) é o cinzento neutro, nem bom nem mau? Ou será o meio termo justiça o bom, e ambos os extremos o mau? Mas uma pessoa que sacrifica tudo pelos outros poderá ser considerada má? Jesus é mau? E a Justiça é só mais ou menos, não é boa nem é má? Devemos escolher a Justiça ou o Bem? E se a Justiça é superior ao Bem isso não a torna por definição no verdadeiro Bem?

E se a pessoa que faz o sacrifício extremo for masoquista e derivar prazer do seu próprio sacrifício (i.e. é masoquista)? Muda alguma coisa no juízo de valor embora a acção e o resultado para os outros sejam os mesmos? E se a pessoa souber que é masoquista mas disser que não e que o seu sacrifício é verdadeiro, é hipócrita? E se a pessoa não tiver noção do seu masoquismo - acreditar que não é masoquista quando na verdade é - será hipocrisia? E se lhe mostrares que está a ser hipócrita mas ela não quiser pensar nisso, muda alguma coisa?

E em relação à vaidade, na tua régua moral é um mal absoluto? E o oposto humildade é uma virtude? Supõe então que vives rodeada de gente mesquinha e vaidosa (não é preciso muita imaginação). Supõe que a multidão ignorante atribui valor às opiniões das pessoas consoante o valor que elas dão a si próprias. Supõe que tu tens uma opinião correcta em relação a qualquer coisa, por exemplo acerca da inocência de um determinado homem, e que alguns mesquinhos vaidosos muito bem sucedidos têm opinião contrária. A tua humildade torna-te impotente para fazer o que está certo, porque a multidão ignorante seguirá as opiniões erradas dos que mentem bem. O que é que aqui tem mais valor - o teu purismo moral em manteres-te fiel às tuas virtudes (humildade) ou o teu sacrifício dessa virtude para salvar o homem? Não será o teu purismo moral em relação à humildade uma forma de vaidade - a tua virtude vale mais do que a vida do homem? Não será isso também uma hipocrisia? E se considerares este cenário de conflito como possível de vir a acontecer no futuro mas inexistente no presente, precaveres-te contra ele cultivando a tua vaidade é justificável?

Tenho curiosidade em saber como é que a tua régua moral mediria estas situações. E espero que não leias isto como sendo ofensivo, porque não é essa a intenção.

katrina a gotika disse...

Ora, nada ofensivo, Tomás. Eu até gosto de debater matérias filosóficas, então vamos lá.

«Se O DG é "oco, fútil e vazio", como descreverias o LH?»

Um homem inteligente. Um filósofo.

«E se o culto do prazer próprio sem olhar ao custo em sofrimento alheio é "verdadeiramente satânico", então o inverso - o culto do prazer alheio sem olhar ao custo em sofrimento próprio (sacrifício extremo) - será angélico?»

Utilizei os termos "satânico" e "luciferino" no sentido cultural, ou religioso, se quiseres, mas mais do que religioso, cultural, em que ao entregar-se à maldade contra o outro ser humano o homem está apenas a dar vazão ao Mal dentro de si. Eu, pessoalmente, não diria que esse Mal (em que acredito) venha de um diabo outro que não a própria natureza humana, e é nesta natureza humana que também encontras o Bem, a bondade para com os semelhantes, o não fazer o que não queres que te façam a ti. Cabe ao homem escolher.
Escolhi também estes termos porque Lord Henry me parece o bíblico personagem Diabo, incitando, sugerindo, tentando. Lord Henry, o personagem, nunca pratica aquilo que prega. Achei que "diabo" lhe ficava bem.
Espero ter esclarecido a terminologia usada.

«E aquilo que alguns chamariam justiça - dividir o prazer e o sofrimento entre o próprio e o alheio (tenhamos todos uma parte igual de ambos) é o cinzento neutro, nem bom nem mau?»

Devemos distinguir entre mal que pode ser evitado e mal que não pode ser evitado. O primeiro é o Mal (ex: o assassínio). O segundo é um facto da vida (ex: a morte natural).

«Devemos escolher a Justiça ou o Bem? E se a Justiça é superior ao Bem isso não a torna por definição no verdadeiro Bem?»

Acho que já estás a confundir muitos termos. Não estás a falar da justiça legal, pois não, mas antes a chamar "justiça", por exemplo, ao facto de todos nós morrermos? Como te disse, é um facto da vida. Não depende de nós, não há escolha, logo não é uma questão moral. Se é que te estou aperceber... o_O

«Mas uma pessoa que sacrifica tudo pelos outros poderá ser considerada má? »

Por esse facto, não. Poderá sê-lo por outros. Talvez queiras dar um exemplo.

«E se a pessoa que faz o sacrifício extremo for masoquista e derivar prazer do seu próprio sacrifício (i.e. é masoquista)? Muda alguma coisa no juízo de valor embora a acção e o resultado para os outros sejam os mesmos? E se a pessoa souber que é masoquista mas disser que não e que o seu sacrifício é verdadeiro, é hipócrita? E se a pessoa não tiver noção do seu masoquismo - acreditar que não é masoquista quando na verdade é - será hipocrisia? E se lhe mostrares que está a ser hipócrita mas ela não quiser pensar nisso, muda alguma coisa?»

Essa é uma questão muito interessante e polémica. O que conta é a intenção ou a acção? Eu, pessoalmente, acho que o que conta é a acção. Também acho que é dever dos outros tentarem impedir a pessoa masoquista de prosseguir nesse estado doentio e ajudá-la a ter auto-estima.

«E em relação à vaidade, na tua régua moral é um mal absoluto? »

Pelo contrário! Na minha régua moral, é uma necessidade.

«O que é que aqui tem mais valor - o teu purismo moral em manteres-te fiel às tuas virtudes (humildade) ou o teu sacrifício dessa virtude para salvar o homem?»

Se fosse preciso comprometer os meus princípios morais para salvar o homem, fá-lo-ia. (Se era isso que estavas a perguntar.) Já não era a primeira vez que o faria, de resto. A sociedade a isso nos obriga quase diariamente.

Se não respondi melhor às tuas questões, ou se respondi ao lado, foi por não ter compreendido algumas coisas. Estás à vontade de as esclarecer.