sexta-feira, 25 de julho de 2008

Movimento gótico: Uma Perspectiva IV

Os anos 90 trouxeram um techno ainda mais agressivo e um novo tipo de música alternativa, o trance da XFM, que já não gostava das modas passadas.
E foi aqui que se separaram as águas. A maioria cresceu e juntou-se à grande mole humana de pseudo-ecléticos, que significa "ouço tudo porque não gosto de nada", uma minoria era de facto melómana e eclética (mas poucos, muito poucos), e tudo se diluiu. Tudo fechou.
Os anos 90 nasceram negros para o gótico. Não havia música nova e quando as bandas antigas que ainda não se tinham separado produziam alguma coisa estava muito abaixo das expectativas. A Juke Box tinha-se mudado para um subúrbio onde ninguém conseguia ir. Era o fim do gótico. Era mesmo o fim. Conformei-me. Como eu, muita gente.
Desde que sair à noite se tinha tornado moda, e por volta de 1995 já não era coisa de putas e intelectuais ricos mas de toda uma fauna humana de jovens acima da puberdade, dos liceus e das faculdades, o panorama de negócio fez florescer toda a avenida 24 de Julho com novos bares e discotecas, todos muito alternativos. O problema está mesmo na palavra "todos". De facto, todas as editoras, todos os artistas, todo o público, começou a intitular-se alternativo. Foi a grande moda do alternativo, como se alguma vez a alternativa pudesse ser maior do que a norma. Obviamente que não podia e era apenas alternativa de nome. As próprias lojas, dantes tão pouco interessadas em importar as novidades indie, agora tinham grandes autocolantes a dizer "alternativo". Alternativo para todos!
Desde o Cais do Sodré até Alcântara, onde se foram abrindo pequenos bares e grandes espaços dançantes como cogumelos, só se ouvia techno e grunge, grunge e techno. Um barzinho ou outro ainda ia fazendo noites temáticas dedicadas aos anos 80 mas ficava-se pelos grandes hits das bandas do costume, e assim que começava a entrar clientela mais comercial mudava logo a agulha para lhes agradar. Acabaram por não agradar a ninguém... e desapareceram. Por alguns anos, acredito mesmo que o movimento gótico deixou de existir.
E quando tudo parecia perdido, até o velho Bairro Alto, aconteceu o milagre! Docas ò Docas, bendito seja o ventre que vos pariu! Foram as Docas que salvaram o Bairro Alto, arrastando para lá a volúvel betalhada e a imitativa bimbaria. As ruas e travessas foram devolvidas à juventude estudantil que as tornou alternativas e isso é que importa. A César o que é de César, às Docas o que é das Docas.
Não acredito que a geração a seguir à minha tenha percebido a armadilha, criados como foram a ouvir Nirvana a Pearl Jam, tudo muito alternativo... para todos! Bandas como os Metallica lideravam os tops de vendas. É claro que a bolha tinha que rebentar por algum lado.
E rebentou.

Her perfume smells like
Burning leaves.
Everyday is Halloween.

Yeah you wanna go out
'cause it's raining and blowing.
You can't go out
'cause your roots are showing.

Dye 'em black.
Dye 'em black.

Black black black black No. 1


Type O Negative, "Black #1"

Se o movimento gótico inicial definhava e desaparecia, por outro lado, qual erva daninha no bom sentido, um metal novo começava a aparecer, de negro vestido, e carregadinho de letras sombrias sobre as noites da alma. Bandas como os Cradle of Filth aproveitaram o romantismo mórbido de um imagético extremo e protagonizaram uma ruptura definitiva com a violência acéfala de uns Iron Maiden ou uns Slayer dos anos 80. Do nevoeiro das bandas góticas parecia apenas ter subsistido uma nova moda, o gothic metal. Desde a paródia dos Type O Negative à projecção internacional dos Moonspell, o gothic metal, honra lhe seja feita, não teve complexos em ir beber directamente à fonte, do vampirismo de Bram Stocker à lúxuria decadente dos poetas malditos do século XIX, passando por um reviver do paganismo também tão ao gosto do ideal romântico. Fizeram-no bem e arrastaram multidões pelo mundo inteiro. Eu própria cheguei a frequentar as feiras alternativas da Margem Sul, salvo erro no bar Convívio (e se me engano é porque nos anos 80 já havia intensa actividade no género no velhinho bar Convívio de Cacilhas).
Os anos 90 viram assim nascer uma nova geração, em que os metaleiros se vestiam de preto, os jovens normais se vestiam à Kurt Cobain, e os betinhos... se vestiam à betinhos (e hão-de continuar a usar os mesmos penteados à tigela até ao fim dos tempos, palavra!). As pessoas da minha idade, na altura com vinte e tal anos, tinham "crescido" e só pensavam em constituir família, construir uma carreira... Muitos nunca mais sairam à noite. Os mais "dependentes", sei-o eu e aqui fica a inconfidência, andaram com as mesmas K7s no auto-rádio, com os mesmos Sisters, os mesmos Bauhaus, os mesmos Cure, durante uns 10 anos ou até a K7 estourar, sem se darem ao trabalho de conhecer música nova, como se a música tivesse acabado nos anos 80. Perderam-se.
[A esses deixo a boa novidade: existe música para além dos anos 80, boa música, aliás, e actualmente até muitos sítios onde a ouvir. Não há desculpa. Velhos são os trapos.]
Eu também me julgava perdida (e longe de casa e cheia de saudades) quando a meados dos anos 90, certa noite igual a qualquer outra, ia começar a subir a rua do Alecrim, direita a uma tasca qualquer do Bairro Alto cheia de baratas e onde por acaso se ouvia metal (não havia outra coisa), e vejo um grupo de jovens vestidos como se tivessem saído do século XIX... não, melhor!: de um filme do Drácula. Parei, estupefacta, e exclamei para quem me acompanhava: "Não sabia que ainda havia disto!"
O meu comentário, pejorativo para o ouvinte mais distraído, só prova como as aparências enganam. Durante aqueles anos eu e muitos outros tínhamos perdido o rasto à tribo, e naquele momento tudo o que eu queria era segui-los, segui-los, segui-los!!! E não descansei até descobrir para onde eles iam. Segunda lição: seguir sempre as pessoas de preto. Terceira lição: nunca dar o privilégio por garantido ("bars come and go; that's it, bars come and go").
Este milagre devo-o ao mal amado gothic metal. Aos meus olhos, a nova geração exagerava. Sim, porque os descobri num instante. Estavam cheios de peneiras e manias, acabados de sair dos cueiros, convencidos que Nine Inch Nails era demasiado "comercial" para se dançar. Se bem que, naquela altura, só se mexiam para dançar metal, porque não conheciam outra coisa. Até achavam que Fields of the Nephilim era aquela banda que imitava os Moonspell. Foi neste estado que fui encontrar a minha tribo, na mais profunda escuridão e ignorância, de cabeça enfiada no umbigo. Foi assim que os deixaram as editoras e as rádios e os jornais supostamente "alternativos" que deixaram de fazer o seu papel. Editoras iriam falir, rádios fechar, jornais excelentes transformar-se em revistas que não vale a pena comprar. Nunca deixei de compreender a alergia dessa geração ao "alternativo comercial", "alternativo" só de nome, mas sem experiência nem cultura musical para distinguir o trigo do joio.
Por essa altura eu já estava velha. Nos dias de hoje, em que vi mais essa geração ficar de cabelos brancos, e uma nova geração chegar, já sou uma avózinha. Mas agora as coisas mudaram. A prova disso é este espaço de espanto e pavor em que escrevo estas linhas de memória para novos e velhos, sem editoras, nem rádios, nem jornais pelo meio. Este sítio virtual onde se espalham ideias e se divulgam eventos, onde se fazem páginas de referência, mapas para que ninguém se perca quando mundo se atravessa à frente, para que ninguém tenha de se conformar e pensar que é o fim.
Foi na Rua da Fé, que nome mais providencial, que se reuniram os resistentes até ao fim do século.
E foi mesmo aí, precisamente aí, que voltei a casa.
Na Juke Box, ao sábado à noite, já não se ouviam apenas os clássicos da década anterior. Havia música nova, música que não se ouvia em rádio nenhuma: Therion, Marilyn Manson, Rammstein.

Asche zu Asche
und Staub zu Staub


Rammstein,  "Asche zu Asche"

Razão pela qual acabei por arrancar e enrolar a antena FM e nunca mais ouvi rádio excepto online. Vídeos de música, agora que a sociedade era muito mais rica, também não passavam (nem passam) nos quatro canais gratuitos. Há muito tempo que o Blitz ignorava as bandas góticas (mesmo as novas). Mais um sinal do fim de uma era. Adeus, passado, adeus!
Estava prestes a começar um mundo novo, à distância de um clique na internet, que no final dos anos 90 ainda era demasiado lenta e cara para que todos tivessem acesso. A verdadeira revolução ainda estava para vir.
Quando parecia que os góticos de Lisboa tinham uma casa, a Juke Box na Rua da Fé acabou a poucos dias do novo século. Houve lágrimas na despedida e não era para menos. Mal sabíamos todos, os mais novos e os mais velhos, que o novo milénio não trazia nada de bom para ninguém. Mas nessa altura, verdade seja dita, ninguém sabia.
Lembro-me de ter passado o ano 2000 a ver fogo de artifício em Belém e depois, como não havia mais nada onde ir, ter abancado num bar da 24 de Julho onde dava a Macarena. Mas a minha alma ouvia música diferente, muito diferente:


Everything dies

Type O Negative 

1 comentário:

Lord of Erewhon disse...

Bom, enfim... tirando o que qualquer pode sacar de livros e revistas, no fundo, falamos todos do que vivemos - há aqui muita coisa a bater ao lado, mas deve ser a tal questão do «generation gap»... LOL!!!