quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A morte moderna

E voltamos a falar na morte.
Há pouco tempo soube da morte de um amigo, mas soube tarde e a más horas. Temos a tendência para pensar que algumas pessoas que desaparecem das nossas vidas estão em todo o lado menos mortas porque são muito novas para morrer. Essa é uma das perplexidades da morte. Nunca se é muito novo para morrer. O dia em que se nasce é um dia mais próximo Dela.
Mas hoje não quero falar da eterna perplexidade da morte mas sim da morte moderna.
Da última vez que fui a um funeral foi por um vizinho idoso a quem tinha apreço. Lembro-me que tive de pedir autorização no trabalho e de me olharem de lado como se fosse uma extravagância, um mimo, uma ida ao cabeleireiro. Pedir dispensa do trabalho para ir a um funeral? Não podia ir ao funeral no fim de semana? E mesmo assim tive sorte. Na condição precária em que me encontro, actualmente só poderia ir à noite ao velório. Acompanhar o defunto à última morada à hora de expediente é que não. O morto que morresse ao sábado.
Isto faz-me impressão, confesso que faz. Seriam vinte pessoas naquele funeral, no funeral de um homem idoso que deve ter conhecido tanta gente ao longo da vida. Até se pensaria que era uma peste. Só uma peste merece ter um funeral de vinte pessoas. Achava eu.
Comecei a pensar no assunto, porque a morte é daquelas coisas que não me saem da cabeça, quando percebi que se um amigo chegado morresse ia ter muitos problemas para ir ao funeral. A lei laboral só contempla essa "benesse" para a família. Ao funeral dos amigos não se pode ir.
E depois pensei como as coisas mudaram com o progresso. Antes, quando Lisboa era ainda uma aldeia de pequenos bairros, e morria alguém lá da rua, nem se pensava pedir ao patrão para ter dispensa para ir ao funeral. Que raio! Fechava a mercearia, fechava a farmácia, fechava o sapateiro, punham a gravata preta e iam todos ao funeral. E depois voltavam, todos, mesmo todos, para os seus afazeres. Não falo do século passado. Falo de coisas tão presentes como os anos oitenta. A partir daí, o progresso ditou que os moribundos fossem para o hospital e os mortos se enterrassem sozinhos. É isto progresso?, pergunto ingenuamente. É isto que se faz nos países desenvolvidos?
Se a minha indignação pega, ainda vamos ter funerais depois das seis. Ou de noite. Faltar ao trabalho para ir ao funeral de um amigo é que não. Com os mortos que vão os velhos, que é o sítio deles. As crianças estão na escola e os novos estão a trabalhar. Não há tempo para enterrar os mortos. Toca a andar, sempre a correr. Isto é que é o progresso? Que honra está na vida quando se rouba a dignidade à morte?
Estranhos tempos, estes. Tempos de guerra, tempos de peste, tempos das mais terríveis trevas. Os vivos estão mortos e não sabem.

4 comentários:

Goldmundo disse...

Sim. E os mortos estão vivos, e eles não sabem também. Não sabem nada, já.

Penso que não é só o medo da morte, mas também o medo da memória. Lembrar os mortos e lembrar as coisas que se perderam é um caminho que vai sempre ter muito dentro de nós.

E vai-se aos enterros por "afecto aos vivos" e não por memória e saudação ao que se mantém entre nós - morto.

Mas, claro: é tão importante ir ao enterro dos importantes.

Dark kiss.

Vítor Mácula disse...

Por inverso e pelo mesmo, conheço quem tenha tido problema semelhante para assistir ao parto do seu filho (homem, evidentemente, ainda não se conseguiu tecnologicamente esse impedimento para a mulher, quero dizer, quando está efectivamente grávida e decidida a ter o filho ;)

Terríveis tempos, sim, Gotika. O próprio funcionalismo imediato que rege este estado de coisas intensificou-se a tal ponto que se tornou pura e directamente numa destruição do humano – métodos de anestesia e alienação estupidificante, intensos desejos integrados e fixos a objectos que não satisfazem, medos adormecidos que tolhem e nos põem a atacar-nos uns aos outros e ao habitat sem sentido sequer que se possa fixar e combater ou ordenar.

A economia como ideologia já nem é a questão; a máquina já nem é desejante, caminha para o vazio sem auto-significações nenhumas.

Mas não há só isto (embora isto seja tanto). Aliás, este é o seu colapso, por muito que se apresente como a sua vitória (como de costume na História).

Tempos de perigoso futuro, claro.

Mas nem só de tempo sequencial vivemos (embora imensamente habitados nele).

Um abraço

KRIEG disse...

Foste cuscada!

Penemue disse...

Este país é um Call Center.
Tens horas para ficar doente, para morrer, para estar doente do corpo e/ou da alma, e são-te descontados minutos no salário e bónus de assiduidade.
Também já tinha reparado nisso.
É a Era do BBFM (Bigger Better Faster More), um pouco como os Big Mac, muita carne de má qualidade e rápido, rápido, sempre depressa para se fazer de conta que se está a fazer alguma coisa.
Até morrer convém ser depressa.
Não sei para que tanta pressa, se continuo com a sensação de estar a pedalar numa bicicleta estacionária, mas o que interessa é que pedale depressa! ...


Abraço