quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Precariado de todo o mundo, eu disse: Uni-vos!

O Goldmundo deixou um comentário no post abaixo a que eu ia responder com outro comentário que pela sua dimensão e importância decidi transformar em outro post. Até porque me dá a deixa para falar de um tema que já aqui queria abordar há algum tempo, a globalização.

Cito o Goldmundo:
«Acho que já uma vez comentei que o velho "proletariado" do século XIX viveu coisas piores. O "Estado" nem sequer fingia preocupar-se: limitava-se a fazer avançar a guarda a cavalo.

Independentemente do que pensemos do marxismo e das revoluções socialistas, houve quem se organizasse, resistisse, conseguisse o reconhecimento do direito à greve, fizesse baixar as horas de trabalho por dia.

De modo que não tenho a certeza de que o Alfredo Barroso não esteja a tentar passar uma ideia séria não quer dizer que o aprecie muito): o "precariado" de hoje não tem tantas hipóteses de vencer, apesar de o inimigo ser menos brutal (fisicamente).

Razões? Bem, "proletariado" quer dizer "aqueles que só têm a sua prole", os seus filhos. Famílias. Grupos. Religiões. Terra, para os camponeses (mesmo que lhes não pertença). Espírito de alcateia. Tribos. Estavam unidos, para o bem e para o mal (mesmo odiando-se, mesmo batendo nas mulheres, mesmo violentamente). E nisso eram iguais aos burgueses, iguais aos nobres.

Dantes, para que aparecessem as forquilhas e as tochas, bastava tanger os sinos da igreja, ou fazer um discurso na taberna, ou lançar um panfleto do partido.

Tempos difíceis, estes. Pela primeira vez na história do ocidente, os impérios estremecem e nem sequer se pode contar com os bárbaros.»


Gosto das tuas farpas e especialmente da frase «o "precariado" de hoje não tem tantas hipóteses de vencer, apesar de o inimigo ser menos brutal (fisicamente)». Mas tenho reservas quanto a esta: «Acho que já uma vez comentei que o velho "proletariado" do século XIX viveu coisas piores».
Sinto-me na obrigação de salientar que o mundo mudou dramaticamente desde esse período e nesta questão do trabalho aponto três factores com que os revoltados do Antigo Regime (e até mais tarde no século XX) da velha Europa e jovem América não tinham com que se preocupar: a implosão demográfica, a tecnologia e a globalização.

Primeiro, a implosão demográfica (envelhecimento da população associado à quebra da natalidade) e a decrescente necessidade de mão de obra devido à tecnologia.
Nesses tempos dos movimentos operários, ou, se quiseres, proletários, as pessoas viviam menos tempo mas enquanto viviam eram necessárias à classe poderosa porque,
1. Não existia a máquina que substituísse o trabalho braçal, como agora.
2. Havia dificuldade em aprisionar, transportar e manter escravos de modo seguro, o que se veio a provar com a proibição da escravatura. (Ou seja, provou-se menos caro ter assalariados do que escravos.) Agora os escravos, oriundos das nações que ainda fazem filhos, vêm para o trabalho forçado pelo seu próprio pé, provocando concorrência desleal às tribos locais de que falas e roubando-lhes poder de negociação.
Enquanto no século XIX um homem podia aspirar a viver 60 anos, e era velho aos 50, mas por outro lado tinha dezenas de filhos e filhas cheios de vigor que podiam realmente lutar, hoje tens mais velhos de 50 anos do que jovens com vigor. E como ninguém pode dar-se ao luxo de parar de trabalhar aos 50 anos, abrindo vagas para os filhos, o número de crianças é forçosamente limitado. Não são necessárias, pelo contrário, são um estorvo. Se dantes a dezena de filhos tomava conta dos velhos (que eram velhos menos tempo), hoje tens velhos a tomar conta dos filhos que também já são velhos porque para que os pais trabalhem os filhos não podem trabalhar.
Juntando todos estes factores demográficos e a imigração, tens casos de famílias em que apenas um tem emprego (sustento de todos) e não o pode perder. Dantes tinhas pais e filhos a trabalhar na mesma fábrica. Agora a família tem sorte se um tiver trabalho.
Ao contrário do século XIX, não vai ser dos trabalhadores a revolução, se a houver, simplesmente porque o trabalhador perdeu poder. Repara, de que adianta organizar uma greve se basta ao patrão contratar substitutos? De que adianta fazer um piquete anti-fura greves se basta ao patrão despedir os grevistas e não ficar prejudicado? Há gente a mais para trabalho a menos. Caberia ao Estado garantir que os grevistas não seriam despedidos, mas o Estado, este e muitos outros por todo o mundo, está do lado do patrão porque é o patrão que sustenta a classe política no poder e a oposição que aspira ao governo.
Para mais, sugiro a leitura do Hora Absurda que disto já disse tudo e de forma bem mais espirituosa do que eu.


Segundo, a globalização.

Por trás da minha forma de expressão aparentemente cínica e descrente na humanidade, eu sempre fui uma ingénua idealista. Talvez por isso me tenha tornado paranóica. Já dizia o outro, "por não seres paranóico não quer dizer que não andem atrás de ti". O efeito da globalização nestas e noutras precariedades é notável.
Sempre fui pró-globalização de boa fé, acreditando que unindo as nações, como na Europa, e estendendo essa união ao resto do mundo, os países em que as pessoas têm menos direitos evoluíssem cada vez mais na direcção dos países em que as pessoas os têm mais. Ou seja, sempre acreditei que abrindo as portas a uma China, por exemplo, os chineses aspirassem a viver como numa Dinamarca, e nunca que a globalização forçasse os dinamarqueses a descer de nível para se aproximarem da precariedade dos chineses. Nem tenho dúvida nenhuma de que os chineses prefeririam não trabalhar 18 horas por dia (ou mais?), mas governos repressores, no entanto, tudo têm feito para que os países mais pobres assim continuem a fornecer o mercado mundial de mão de obra barata e pouco exigente.
Agora, porque sou paranóica, começo a questionar a boa fé de grupos anti-globalização (todos compostos de putos ricos que podem deslocar-se a manifestações em tudo o que é lado do planeta) que dizem defender a multi-diversidade. Pergunto eu, não será antes que os espertalhões perceberam que a globalização lhes ia custar os empregos e por isso desataram a espalhar a noção absurda que andar descalço em África é uma questão cultural? Longe de mim impor aos africanos que se calcem ou aos chineses que trabalhem menos, mas na parte que me toca preferia os sapatos e mais dinheiro por menos horas. É uma questão cultural, certo? Está-se mesmo a ver.
A chico-esperteza dos grupos anti-globalização não vai muito longe. A globalização é impossível de travar num planeta em que uma pelintra como eu tem conversas na internet com a fina flor de Nova York. Talvez seja preciso atingir um novo patamar de equilíbrio, a nível mundial (agora que já não há para onde escapar), em que o precariado seja igual em todo o mundo para novamente poder fazer frente aos opressores. O precariado está desorganizado porque é global mas continua agarrado à sua tribo de origem pela qual mata e morre. Ainda está convencido que a solução é fugir para outros países onde ganha mais um tostão à hora. A pensar assim, o precariado não vai a lado nenhum. Mas, por outro lado, enquanto houver desequilíbrios tão acentuados entre países não haverá maneira de combater aqueles a quem a escravatura interessa. Nem com bombas atómicas. Lamento muito na parte que toca à Europa mas os poderes do mundo não vão permitir o nivelar por cima por isso vai ser preciso... nivelar por baixo. O que é exactamente o que está a acontecer.
Depois, quando todos perceberem que estão no mesmo barco, talvez algo aconteça. Talvez. Se ainda houver planeta.

7 comentários:

H. Sousa disse...

Será mesmo paranóia nossa? "Eles" querem que pensemos que sim, normais são os escravos submissos que aceitam resignadamente a sua condição.
Abraços

Ana Oliveira disse...

Simplesmente fantástico, este post!

Penemue disse...

Já perdi a esperança.
Acho que as pessoas estão demasiado assustadas (incluindo eu), demasiado aprisionadas e isoladas nas colmeias das cidades, onde só se dá pela morte de um velho quando começa a cheirar mal.
Unirem-se? Têm medo. O dinheiro está caro e ao chibo paga-se bem.
Á fila de 50 pessoas para a mesma vaga paga-se menos bem, mas é melhor que passar fome, por isso é que lá estão.
É como dizes, exigir o quê, como, se há tantos que estão prontos a começar no próprio dia com menos ordenado e menos regalias?
Li não sei onde um adágio que se aplica:"Ninguém é virtuoso quando está com fome".
Há demasiada fome.
Excelente post.
Já sigo o teu blogue há algum tempo, mas ainda não tinha conseguido comentar. A ver se é desta.

Fica bem.

Goldmundo disse...

Bem, tinha imensos comentários a fazer... para já fica a letra de uma música belíssima do Zeca Afonso (o poema não é dele):

No inverno bato o queixo
sem mantas na manhã fria
No inverno bato o queixo
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno aperto o cinto
Enquanto o vento assobia.
No inverno aperto o cinto
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno vou pôr lume
Lenha verde não ardia.
No inverno vou pôr lume
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno penso muito
Oh que coisas eu já via
No inverno penso muito
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno ganhei ódio
E juro que o não queria
No inverno ganhei ódio
Qualquer dia
Qualquer dia

... e é isto. "Qualquer dia...". A música (o modo como o Zeca canta isto) faz pensar que qualquer dia o homem se matará. Mas talvez outros homens como ele se revoltassem.

Agora quase sempe vai havendo coisas, pelo menos para os novos. Casa, electricidade, tabaco, música, internet, namorado(a)s, futebol, compal de amora-limão. Os velhos, esses, são velhos. E nas cidades não há lenha verde, e dormir sob as estrelas é perigoso. Vale mais ver televisão e não fazer ondas. Até um dia, até um dia.

De resto, ninguém em seu juízo é contra "a" globalização. O que se passa é que a única coisa que está inteiramente globalizada neste momento é o dinheiro. Não as culturas, as pessoas, os modos de vida, mas o dinheiro. Há quinze dias: um susto nos Estados Unidos e a bolsa de Lisboa caiu 10% numa tarde (os estrangeiros venderam). Perante isto, os governos estão reféns. E na crista da onda estarão cada vez mais os "governantes" que cavalgarem o tigre: Blair, Barroso, Sócrates, Sarkozy...

A receita antiga da revolução faliu (a "tomada de poder proletária" de Lenine). E não há novas prontas-a-usar.

De modo que a escolha, em última análise, é entre pensar no que pode ser feito (se calhar nada) e "consumir" o compal amora-limão, enquanto o houver.

Goldmundo disse...

Hoje fez dois anos que Nova Orleans morreu. Sem glória, por uma mistura de acaso (o trajecto do katrina) e de imprevidência (o mau planeamento dos diques) e de estupidez (a falta de reacção, que dura até hoje: para quê gastar dinheiro a salvar uma cidade de pretos?) É um pouco o simbolo do Ocidente.

E eu gosto mais de Nova Orleans (onde nunca fui) do que da maior parte das pessoas do mundo. Mas isso tu já sabes.

katrina a gotika disse...

Quando descobrir uma nova maneira de lutar, aviso.

Goldmundo disse...

Também eu.

Mas falar e apontar é um bom princípio.