sábado, 9 de dezembro de 2006

"You could call me a Goth, I think"

Aqui há uns tempos, o Klatuu fez uma coisa audaciosa que eu jamais pensei fazer também. Publicou escritos antigos.
Eu sempre tive horror a olhar para trás e ler o que escrevi. (É por isso que não vale a pena deixarem-me comentários em posts antigos: eu não os leio.) Já na segunda classe, olhava para as redacções que escrevia na primeira e achava aquilo tudo uma merda. E sempre que olho para trás acho que tudo o que escrevi está uma merda. Mas um dia percebemos que conseguimos ter um estilo quando finalmente olhamos para trás e gostamos do que escrevemos. Pode ser uma merda de estilo, mas é um estilo. Foi isso que aconteceu quando voltei a ler esta carta dirigida ao vampiro Lestat, que não consigo deixar de partilhar de novo. Perceberão porquê. Está sempre actual!!!

(Lestat:) “My longing for the microphone is gone, but I won’t give up the fancy clothes. I can’t give them up. I’m the prisoner of capricious fashion and am actually quite plain tonight. I think nothing of piling on the lace and the diamond cuff links, and I envy Quinn that snappy leather coat he’s wearing. You could call me a Goth, I think” He glanced at me very naturally, as though we were both simple humans. “Don’t they call us snappy antique dresses Goth now, Quinn?”
“I think they do”, I said, trying to catch up.

“Blackwood Farm”, Anne Rice


^§^ . ^§^ . ^§^ . ^§^ . ^§^ ...


Queridíssimo Lestat, ser gótico não está na roupa que se veste. É certo que o visual é muito importante para nós góticos - e não preciso de lhe explicar porque sei que nos compreende perfeitamente - mas não há nada mais blasfemo que uma criatura insegura e solitária começar a vestir-se “assim” para se sentir integrada durante os anos de caça à queca.
Bem sei, Monsieur de Lioncourt, que a sua caça é outra. Quem sou eu para criticar as necessidades alheias?... E compreendo que só no meio de nós a sua estranheza de aparência passe despercebida aos simples mortais, e que isso lhe deva ser muito conveniente.
Mas não esqueça, senhor Lestat, que os verdadeiros góticos - um pouco à semelhança da sua “gente” - também se reconhecem uns aos outros à distância. Parece que estão sempre distraídos, mas garanto-lhe que estão a controlar tudo e mais alguma coisa.
Não serão as rendas e os botões de punho que o salvarão, Lestat de Lioncourt. Está avisado: pode parecer igual a nós para os outros todos, mas nós sabemos quem é quem. Não passará despercebido. O verdadeiro gótico sabe o que é pó de arroz branco e o que é pele. Tenha cuidado. Use o pó de arroz. Não custa nada.
Mas não desista já! Apesar da nossa inegável frieza para com estranhos, nunca o movimento gótico deixou de acolher um irmão espiritual. O caminho é árduo e implica duras provas... Anos e anos de música e noite, de noite e música. Muito dinheiro gasto em roupinha. Muitos acessórios, muitos sapatos, muito verniz. Muitas horas à frente do espelho a pintar a cara e a arranjar o cabelo. Mas tempo é o que não lhe falta, deveras? Insista. Não desista. Uma destas noites alguém falará consigo. Se tiver sorte, talvez até um verdadeiro gótico lhe dirija mais do que três palavras e dois olhares furtivos.
Não espere que lá por ser um verdadeiro vampiro os góticos o acolham de braços abertos. Era só o que faltava. No movimento gótico são todos iguais: brancos e pretos, homens e mulheres, bruxas e vampiros. São muitos anos a bater à porta para entrar. É muito eyeliner.
E lembre-se, senhor “eu sou o vampiro Lestat”, gótico a sério é o Corvo porque está morto. Gótico a sério é o seu amigo Louis, que nunca disse que é gótico e se vai chorando da vida entre duas dentadas.
O tempo só recompensa os perseverantes. E a recompensa também não é nada de jeito. Por isso é que a maioria dos candidatos a gótico acaba por ir parar às Docas.
A recompensa é apenas uma noite atrás da outra. Poucos são os chamados e menos ainda os escolhidos. Só se sente em casa quem está em casa.
Se é a sua casa, entre à vontade e sente-se onde quiser.
O Gótico abraça quem abraça o Gótico.

4 comentários:

Goldmundo disse...

Nunca me esquecerei deste texto.

Klatuu o embuçado disse...

Lembro... e percebi. Muita gente, não.

katrina a gotika disse...

Eu também nunca me hei-de esquecer deste texto. Gostava de ter coragem de voltar atrás e ler tudo o que escrevi.

Yashmeen disse...

Fantástico texto.
Nasce-se gótico, creio. Há coisas na nossa natureza que "fazem parte", que não se criam, que pó de arroz nenhum consegue inventar...