quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Memória II

Diz-se que quando se morre toda a vida passa como um filme em frente dos olhos.



Verão. 1980.

Havia uma inocência não só em mim como em todas as pessoas crescidas. O mundo era simples. Comprava-se pão na padaria, detergente na drogaria, bolos na leitaria. Toda a Lisboa vivia nesta calma provinciana que não tinha nada a ver com os modelos e continentes de agora e os metros e as pessoas a correrem 2, 3 ou 4 horas por dia só de casa para o trabalho. Havia tempo. Havia tempo!
No verão notava-se mais? Talvez. Mas de inverno também havia pais que levavam os meninos todos da rua à escola, parando de casa em casa, e ainda tinham tempo de ir para os respectivos empregos. As mães podiam ficar em casa e fazer lanches e mandar fazer sestas e os trabalhos de casa. As crianças mais velhas podiam brincar na rua, aos bandos, de putos. Tudo isto era Lisboa e agora é deserto de velhos, mendigos e casas arruinadas, toda uma cidade antiga debaixo de pó como Pompeia.
Como é que o dinheiro chegava com apenas os pais a trabalhar? Se calhar não chegava. Se calhar a inocência era tanta que se pensava que chegava.
Lembro-me dos domingos de Agosto daquele ano de 1980, e como foram quentes, ou se calhar era apenas que eu não tinha memória de tanto calor e fui apanhada de surpresa, e essas coisas não se esquecem. Não que o verão fosse um tempo feliz, mas nessa altura ainda não era tão infeliz. Nessa altura ainda os amigos do bairro não me desapareciam meses a fio, nessa coisa das férias que os levava para longe, para muito mais longe do que eu pensava e do que ainda provavelmente penso. Coisa estranha, essa de viajar, de ir para a "terra" ver a "família", de ter lá "casa" ou "parque de campismo", o que raio seria isso.
Havia alguns dias em que o capricho levava o meu pai a passear-nos à praia. Porquê apenas alguns dias por ano ou só de manhã, nunca percebi porque nunca me entrou na cabeça. Para mim as coisas fazem-se fundo, não se toca só na superfície, mas tenho para mim que era a minha mãe que não gostava do mar.
Os domingos eram então dias chatos em que o momento alto era ir ao único restaurante que estava aberto quando as leitarias tinham fechado para férias e comer uma mousse de chocolate. Depois havia que sentar a vegetar em frente à televisão até ser noite e ser hora de dormir, mas eu não dormia. Nessa altura não podia perceber como a frustração e o ódio se acumulava mais nesses dias quentes, como vapor a apitar, em que se ficava no fresco do escuro de casa. Não admira que aqui se morra de verão. É tradicional. Verão, pó, cemitério, calor, suor a escorrer pela cara abaixo dos coveiros. Para mim verão sempre foi morte, mesmo antes de o saber que o era.
Mas não em 1980, talvez o último ano da inocência. Lembro-me que foi nesse ano que tive um pressentimento, um terrível presságio, de que as coisas iam correr mal. Não, não tinha indícios, mas uma pessoa sabe estas coisas tal como sabe se é menino ou menina. Sabe-se. Ponto final. Mas não foi no verão. No verão ainda se ia todos os dias depois do almoço tomar café à leitaria, as mães e os filhos, e ainda havia esperança.
Eu devia odiar o verão tal como se odeia a morte. Mas não o fiz. Abracei-o muito antes de saber apreciar a solidão. Iam-se todos, ficava só eu. Era uma questão de tempo que um dia fosse eu que me ausentasse quando me convidassem para ir também. Quem olha a solidão muito tempo acaba por descobrir nela encantos inesperados. Viciantes. Plenos de satisfação.
Lembro-me que tinha uma espécie de trabalho de casa por dia, naquelas grandes férias de verão, mas acabava tudo na primeira semana de férias para ter mais tempo livre. *Risos* Hoje percebo o disparate dessa ideia. Como se eu precisasse do tempo livre para alguma coisa. Os meus amigos e colegas nunca os completavam, e agora percebo porquê, porque iam de férias e faziam coisas. Hoje eu resolveria não perder nem uma semana do meu tempo livre com esses deveres maçudos e gravitaria imediatamente para a frente da televisão. Why bother? Nada nunca mudou.

Isto era para ser uma memória agradável mas não o foi. Ainda estou para desencantar uma memória agradável do fundo do baú. Quanto mais olho para trás mais compreendo como fui infeliz, e quando comparo o antes como o agora mais me é aparente que se tivesse de resumir a minha vida numa palavra essa seria "desperdício". Mas penso que houve um propósito, um plano superior para a minha existência. Que não seja perceber isto:

As pessoas são como as plantas. Deite-se uma semente em bom solo, com muito ar livre, e sol, e nutrientes generosos, e água suficiente, e essa planta crescerá e será uma grande árvore e impressionará com a sua imponência. Deite-se a mesma semente num quarto escuro, num vaso ínfimo, e prive-se a terra de água, e esqueie-se-lhe o tronco e corte-se-lhe qualquer ramo que se atreva a despontar, medroso, em busca de luz, e ter-se-à uma planta esbranquiçada, raquítica, moribunda. Se muitos anos depois essa planta sem sorte ainda estiver viva é já uma vitória do seu instinto de sobrevivência. Nada de novo. Eça de Queirós já o disse n'"Os Maias".

Não tenho tempo para escrever mais. Tenho de ir ver televisão.

2 comentários:

Eu disse...

O facto de escolhermos abandonar um lugar não significa que consigamos fugir sem o levar connosco...

Synne Soprana disse...

Excelente!
Gostei do paralelo que estabeleceste entre as pessoas e as plantas... É tão verdadeiro...