sexta-feira, 2 de junho de 2006

(des)Abril em Junho

Os tempos são de escuridão quando uma pessoa receia perder o emprego ou a vida, ou ambos, quando tem que pensar duas vezes se é seguro dizer o que pensa contra os poderes verdadeiramente instituídos.
Nunca pensei ter que dizer isto. O tempo chegou.

quinta-feira, 1 de junho de 2006

Romance com a morte II

Salvo raras excepções...

O romance com a morte começa cedo. Estou convencida de que se nasce gótico ou a alma gótica se desenvolve tão cedo nos primeiros anos de vida que não se nota a sua ausência. A criança gótica sente um fascínio irrepremível pela morte assim que sabe que ela existe. É provável que queira saber mais, que fale do assunto às outras crianças, que tenha conversas mórbidas para a idade. É que a criança gótica ouve desde cedo uma voz, um chamamento, algo que as outras crianças não ouvem. Por isso se interessa por todos os temas que lhe expliquem a morte e, acima de tudo, o que há depois da morte. Como consequência, interessar-se-à por histórias de fantasmas, com um misto de desejo e temor, e pelo sobrenatural, e pela religião a que tiver mais acesso. Não é de estranhar que muitas vezes fique acordada de noite a imaginar a morte, e que lhe sobrevenham terrores, papões, medo do escuro. Alguns pais preocupam-se, outros não dão por nada. Mas, ao contrário das outras crianças, a criança gótica não reage à morte e ao medo dela evitando o assunto. Pelo contrário, torna-se curiosa, investiga, procura. Sente-se incompreendida quando percebe que as outras crianças não pensam nas mesmas coisas. É mais ou menos inevitável que seja do tipo de se isolar, de desprezar as brincadeiras das outras crianças, de se embrenhar na leitura ou na televisão, sempre à procura de explicações satisfatórias para a sua demanda do que acontece na morte e depois da morte.
A criança gótica não é mais inteligente do que as outras, mas é mais séria, definitivamente mais séria. Mesmo que não pareça. (Mas casos excepcionais são raros. A esmagadora maioria de pessoas que me falaram das suas infâncias sempre foram uns bichos do mato.)
A criança gótica segue o chamamento, não o recusa. Nem pode recusar. É por isso que a criança gótica é de facto diferente. Bastante, bastante diferente. E sabe-o, sente-o e sofre por isso.

- Nota: qualquer criança gótica terá gasto o lápis de cor preto antes dos outros todos. Estranhamente, os lápis de cores garridas ficam intactos. -

De todo este isolamento (se não exterior, pelo menos interior), sai um adolescente solitário, incompreendido, e muitas vezes deprimido. A adolescência é também o tempo da cruzada espiritual para encontrar respostas para as perguntas da infância, e o adolescente gótico vai procurá-las em todas as formas de religião e oculto antes de se decidir a enveredar pela doutrina do Bem (ao encontro de Deus) ou do Mal (ao encontro do Diabo), ou, completamente desiludido, se decida pelo ateísmo. Mas o próprio ateísmo é uma mentira que diz a si próprio e aos outros. Não conheço um gótico que não acredite em nada. É mentira e o próprio indivíduo sabe, lá bem no fundo, que é mentira. O misticismo ou a profunda recusa dele são as maneiras encontradas para lidar com a inevitabilidade da morte.
É por esta altura que o gótico moderno encontra o movimento gótico - se não tiver muito azar!
O adolescente gótico, como todos os adolescentes, também procura desenfreadamente a sua alma gémea. Ou talvez um pouco mais. Devido à solidão da sua infância, necessita desesperadamente de alguém semelhante. Quando encontra outros como ele está eufórico de alegria - mas ainda não sabe! Habituado a um caminho solitário e incompreendido, não lida bem com os seus pares. A isso se deve a animosidade permanente entre góticos em geral. Mas o facto é que delira entusiasmo e fará tudo o que os seus amigos estão a fazer. Nisto não é diferente dos outros adolescentes. Simplesmente não demonstra alegria, o que é crónico. O adolescente gótico continua a ser a criança séria que sempre foi.

- Há um risco mais sério de um jovem gótico se meter na droga, estou mesmo convencida disto. Às vezes as respostas não se encontram e há uma maior tendência para viver o dia como se fosse o último. Para muitos que se perderam, foi mesmo o último dia. É pena, porque fazem falta, mas não tiveram força, não tiveram fé no dia seguinte. É muito mais difícil para um gótico ter fé no dia seguinte. Por isso, perderam-se. Seguiram o chamamento até ao fim. Foram ao outro lado e não quiseram voltar. -

Mas apesar da depressão ser tão comum na adolescência, o gótico não é uma fase. E não passa. E não se pense que os góticos não se reconhecem uns aos outros como os ladrões e os assassinos. E os vampiros. (Não queria mencionar os homossexuais para isto não ser levado a mal por alguém, quando não é essa a intenção, mas é bastante semelhante.) Takes one to know one. Aqueles olhares de desconfiança que se deitam aos recém chegados são mesmo isso, a inspecção. "És mesmo diferente ou estás só vestido de preto?" A maioria, a grande maioria, está só vestida de preto.
Por volta dos 20 anos, as pessoas mudam e sentem necessidade de se afastar dos grupos da adolescência. Quando eu digo, meio a sério meio a brincar, que um gótico adolescente é um "projecto de gótico", é a isso que me refiro. Ficar no movimento é um teste que envolve tempo. Muitas pessoas não resistem ao casamento, ao trabalho, ao cansaço. Outros fecham-se na música que já conhecem e não procuram mais. A sua necessidade musical está satisfeita. Muitos outros continuam a procurar música nova, mas já não têm energia ou vontade de participar nos excessos da adolescência.

- São os que têm juízo. -

Mas se o movimento gótico é abandonado, ou se a criatura ouve em casa ou mesmos CDs até à exaustão (e conheço casos, ó se conheço!!!), isso não significa que a alma gótica desapareça. Pode não se vestir de preto mas é de preto que se sente bem, é de preto que se sente "o próprio". Muitos afastam-se e regressam.

- Como a vossa cara redactora. -

Muitos não regressam porque acham uma parvoíce. Mas garanto-vos que em qualquer lugar, passe o tempo que passar, bastam dois dedos de conversa para perceber se "é dos tais". Às vezes, basta a maneira como a criatura perde o olhar em redor e inspecciona, ele próprio, "és diferente ou estás só vestido de preto?".

Não sei o que se passa com os góticos depois dos 30. Terei que contar a história daqui por dez anos, se entretanto a voz não me levar e o chamamento não tenha de ser seguido para o outro lado. Pelo que me é dado a perceber, circulam, como fantasmas, e aparecem onde menos se espera. Às vezes sentem-se tolos por tentar voltar (a adolescência também pode deixar marcas dolorosas), mas acabam por voltar nem que seja no concerto da banda que ouvem em casa até à exaustão. Neste caso, não se vestem de preto para a ocasião, simplesmente permitem-se voltar a ser eles próprios.
Algures, em todos os tempos, eles deambulam e pensam no romance amargo que dançam com a morte, mais ou menos tentando escondê-lo, mais ou menos tentando parecer normais, mas ou menos voltando aos medos de infância e à primordial solidão dos seres que são diferentes dos outros. Mas eles andam por aí. They walk among you.
Muitos declaram-se "curados". Outros continuam a ostentar a dor. Com eu dizia no post abaixo, é um pouco como o sexo, cada um faz como quer. Talvez uma meia dúzia esteja mesmo curada, aqueles que verdadeiramente já abraçaram a morte ou se preparam para abraçar. Porque, afinal, mesmo que a morte seja o fim de tudo, é também o fim do sofrimento. Aceitá-la antes de ela vir é uma cura. E é um estado mental de libertação.
Nisto, os góticos também não são diferentes dos outros que lá chegam por outras vias. Simplesmente não demonstram alegria, o que, como eu já disse, é crónico, mas se não fosse assim, não eram góticos e não eram diferentes.

Outro dia dei comigo a pensar, ó por amor de Deus, admitam! Somos góticos, não somos felizes!!! Senti-me logo muito melhor.