quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

A vida secreta de Elena Strange

Foi por acaso, se acaso o acaso existe, que Edward conheceu Elena Strange. Ela estava numa das filas da frente mas, mesmo que não estivesse, em toda a audiência do sermão de domingo de manhã era difícil não reparar nos olhos mais bonitos da paróquia. E foi por acaso que tinha sido pedido a Edward para substituir o pastor que se ausentara por uma semana. Foi também por acaso que depois do serviço, naquela manhã, havia uma reunião social de paroquianos. E Elena ficou por mais algum tempo. Foi assim que Edward a conheceu. Ela era alta, ruiva e tinha um sorriso de pedra quando lhe apertou a mão. Tinha uma casaco verde e luvas de renda branca. E uns olhos cinzentos carregados de palavras não ditas.
Elena era uma pessoa muito reservada, mas se calhar porque Edward também era um estranho e não ia ficar na paróquia, Elena deteve-se junto dele e deixou que algumas palavras fossem trocadas a que nenhum outro pastor ou paroquiano tivera direito. E conversaram, e Edward chegou mesmo a ter direito a um sorriso a sério.
Edward era pastor há poucos anos mas seguia uma vocação ardente. Ainda não encontrara a sua cara metade e não pensava muito no assunto porque a obra de Deus o consumia. Eis que Elena vinha transtornar isso tudo. Quando é que soube que estava apaixonado por Elena? Talvez depois de se encontrarem duas ou três vezes, ou no primeiro dia em que a conheceu na igreja?... Edward, ele próprio, não sabia. Mas fora da igreja as conversas estenderam-se, e com ela falou dos mistérios da existência, e Elena argumentava, questionava, perguntava o que Edward nunca ousara pôr em causa, e Edward gostava disso. O que o surpreendia é que Elena, que se questionava, tivesse alguma fé de todo, enquanto ele, que não se questionava, muitas vezes sentia que não podia afastar-se da obra temendo perder a fé.
Elena revelou então porque era tão reservada e quase não falava com os outros paroquianos.
- Gosto de ti, Edward, porque a tua mente é aberta e admite o porquê. Os outros não admitem.
O jovem pastor não pôde deixar de se sentir lisonjeado. Como Elena era diferente de todos os que tinha conhecido! Certamente havia mais sobre ela que ainda não tinha sido dito mas lia-se nos seus olhos cinzentos que às vezes se cobriam de melancolia. E Edward, obviamente, como qualquer apaixonado, queria saber.
Será que Elena alguma vez correspondeu? É difícil de dizer. Elena nunca abordou o assunto. Elena sempre pensou que era impossível. E se depois o deixou ver mais do que o véu das aparências, foi talvez a maior prova de amizade que lhe poderia prestar. Porque a Elena que ele conhecia era uma mulher inteligente, culta e bonita, talvez demasiado perfeita para ser igual às outras, mas agora ela revelava-lhe que não frequentava os mesmos sítios que o resto das pessoas, e era por isso que não se podiam encontrar mais vezes, porque Elena tinha fé mas acabava aí, como ela dizia, o seu “envolvimento com a sociedade”.
- Não é bom para ti seres visto comigo. – explicou-lhe. – Não nos devíamos ver mais.
Foi aí que o mundo de Edward ia desabando. Como era possível que houvesse em Elena alguma sombra de condenável? E mesmo que houvesse, quem é que ia atrever-se a atirar a primeira pedra? Não era ele pastor de uma congregação? Não devia ele dar o exemplo?
Foi então que os olhos cinzentos de Elena se tornaram mais escuros e ela revelou, em confidência, onde Edward a podia encontrar à noite. Se a encontrasse, isto é, e se queria mesmo conhecer a verdadeira Elena.
“Se a encontrasse” foi uma parte de Edward não compreendeu. Só percebeu que ela frequentava um bar que lhe era completamente desconhecido, tanto mais desconhecido porque não era um bar de reconhecido vício. Tudo para Edward era uma novidade. E não sabia o que Elena queria dizer com a frase “eu não sou como as outras pessoas”.
Cabia ao pastor procurar Elena onde Elena dizia que ia estar. Se ele quisesse. “Encontra-me se me encontrares”, disse ela.
Edward não resistiu. Tinha que ver por si próprio. Porque ela explicou mas ele não percebeu, e era como se não tivesse ouvido nada.
Naquele sábado à noite vestiu um fato, pôs uma gravata, e dirigiu-se à morada. Oblivion era o nome do bar, mas o nome era recente. O taxista conhecia o local mas não o nome. Parecia que o bar estava sempre a mudar de sítio e de nome. Parecia que o bar não queria ser encontrado. Edward teria desistido de encontrar um lugar tão obscuro se não fosse o amor que guiava os seus passos. Mas e se Elena precisava de ajuda para sair da perdição? Sim, talvez Elena precisasse de ser salva.
O sangue gelou-lhe nas veias quando a porta do bar foi aberta. Dois ou três rapazes ou homens (era difícil dizer a idade deles devido à maquilhagem) olharam-no de cima a baixo mas resolveram deixá-lo entrar. Estavam vestidos de preto. Tinham os cabelos pintados de preto. As próprias paredes eram pretas. A escuridão era a de um túmulo. Edward teve medo.
Ambientes de vício ele já tinha frequentado na sua caminhada para a vocação. De tudo ele já tinha visto ou experimentado. Mas que inferno estranho era aquele? O que faziam todas aquelas pessoas na penumbra, vestidas de negro, alguns sozinhos outros não tanto, mas todos imersos em música que Edward nunca tinha ouvido? E Elena? Como é que Elena podia estar ali?!... Mas Elena não era do tipo de pregar partidas. Elena era séria e preferia estar calada se não pudesse dizer a verdade. Logo, Elena estava ali, mas ele não a encontrava de facto. “Se me encontrares”, lembrou-se das palavras dela. E agora percebia. Ia ser difícil encontrá-la na escuridão.
Edward deve ter estado sozinho uma meia hora, a bebericar uma cerveja e a olhar para as pessoas e as pessoas a olharem para ele, até que no meio do fumo e na embriaguez da penumbra se tornou invisível e todos deixaram de lhe prestar atenção. Afinal, Edward, no seu fatinho azul e gravata a condizer, parecia um estranho de outro planeta. E, no entanto, para ele eram os outros que pareciam estranhos. Estava rodeado de gente estranha, vestida de preto, maquilhada de preto, entregue à música e à bebida como se pertencessem a um culto. A um culto sem pastor. O único pastor ali era ele, mas aquele não era o seu rebanho. E a música estava tão alta que não se podia pregar. Edward pensou se por acaso não seria a música a religião daquela gente.
E foi entregue a estas meditações que, no meio da penumbra, no que parecia ser uma pista de dança vagamente iluminada onde as pessoas se mexiam para a frente e para trás, finalmente a viu. Elena tinha os longos cabelos caídos, um longo vestido preto e nas mãos luvas de renda preta. Elena dançava e era sem sombra de dúvidas uma deles. Agora Edward percebia que Elena não era nem nunca tinha sido uma dos outros. Era a primeira vez que via Elena, com os lábios pintados de preto e eyeliner à volta dos olhos cinzentos, e aquela fazia sentido. A outra não fazia sentido nenhum. Foi uma sorte “encontrá-la”.
Tão chocado como fascinado, dirigiu-se a Elena que só agora reparava nele, e ela parou de dançar e olhou-o nos olhos durante alguns segundos. Depois guiou-o pelo braço até uma área do bar onde a música estava mais baixa e sentou-o a seu lado.
- Sempre vieste?... – foi só o que perguntou, como se não acreditasse que ele de facto estava ali. – Não devias ter vindo.
- Porque não? Estou aqui há muito tempo e não vejo nada de sórdido. – respondeu ele.
- Vai dizer isso aos teus paroquianos. – desafiou Elena, e levou ao lábios uma bebida, os olhos carregados de preocupação.
Mas Edward tinha de dizê-lo primeiro a si próprio. Que aquele ambiente não era de depravação como ele a conhecia, e no entanto era pior, muito pior. Mas porquê ele não conseguia dizer. Só sabia que não tinha resposta para os paroquianos. Qual era o mal? Qual era o mal?
Elena não se importava. Edward, na realidade, não fazia parte da sua vida. Os seus encontros eram tão secretos como tudo o resto. Porque lhe tinha dito? Por isso mesmo. Edward não era uma ameaça. Mas Elena sabia que estar no púlpito era estar debaixo do julgamento do homens, e agora era ela quem se tinha tornado uma ameaça à reputação de Edward o pastor. Por isso, ela deixou de sorrir.
E, no entanto, ele voltou. Quando voltou vinha vestido de preto para não parecer tão fora do ambiente. E voltou porque continuava a gostar de Elena, e continuava a ter perguntas por responder. Qual era o mal, ele não sabia. Não eram aqueles ambientes todos locais de devassidão e pecado? Não era contra isso que pregava quase todas as semanas? Não era isso que dizia a Bíblia? Mas continuava sem encontrar a sordidez. E isso perturbava-o, e era como se ali sentisse todas as fibras da sua fé a serem sacudidas até que toda a palha caísse como cinza e apenas o esqueleto da árvore ficasse de pé. Nunca se tinha sentido mais perto de Deus.
E havia outra coisa. A música parecia-lhe agressiva, mas as palavras não o deixavam. E nunca noutros locais de perdição tinha ouvido falar de Deus como ali. Isso era estranho, o mais estranho de tudo. Aquela gente esquisita vestida de preto pensava mais em Deus do que os seus fiéis paroquianos. Elena tinha mais fé do que qualquer um deles.
Claro que Edward não pensava que amava Elena por causa disso. A sua paixão, dizia a si próprio, era de natureza mais terrena. Terrena, mas legítima. O seu sacerdócio não exigia votos de celibato.
Quando tentou falar disso a Elena, os olhos dela ficaram vazios. Um sorriso ténue e quase maternal surgiu-lhe nos lábios. Porque Elena conhecia a perda e não era inocente. Seria por isso que gostava de Edward, porque ele era tão inocente e tão puro? Talvez. Mas Elena sabia melhor. E disse-lhe sem qualquer rodeio:
- Não nos podemos ver mais. A tua posição exige que estejas com alguém normal, respeitável, que obedeça às normas da sociedade a ponto de ser um exemplo. Nunca te perdoariam ver-te com alguém como eu.
Claro que Edward tentou argumentar mas Elena estava decidida.
- Sou eu que quero. – e perante a sua mágoa, tentou explicar: - Edward, tu pertences ao mundo do dia e da luz. Eu pertenço ao mundo da noite e das trevas. São mundos que não se misturam. Por alguma razão nos encontrámos, como no lusco fusco do entardecer, mas a noite já vai alta. É aqui que nos separamos.
“É aqui que nos separamos” foi algo que Edward nunca percebeu. E nunca mais foi o mesmo. E nunca mais viu Elena Strange. Porque assim ela quis. E na sua jornada, Edward continuou a procurar o seu rosto entre os paroquianos, mas ela nunca veio e ele nunca mais voltou ao Oblivion.
E no entanto, Edward nunca encontrou ninguém à altura de Elena, e desde esse momento sentiu-se incompleto. Passaram-se meses, anos, tempo infinito até ao momento em que beijando as Escrituras percebeu que a vontade de Deus não podia ser hipócrita como os paroquianos. Onde estava o mal? O mal estava na cegueira dos que não compreendiam a diferença entre o ser e o parecer. Era aí que estava o mal.
Edward deixou de ser inocente. E acabou por perceber o que Elena lhe dizia, anos atrás. Não era ela quem precisava de ser salva. Era ele. Porque ninguém dá valor ao que tem antes de conhecer a perda.
Nessa altura voltou a procurar pelo bar, mas o local e o nome já não eram os mesmos. Anos tinham-se passado. Elena tinha desaparecido. O que aconteceu a Elena, Edward nunca chegou a saber. Mas agora a música já não lhe parecia estranha nem agressiva. A música cantava a Deus com a alma. Edward vestiu-se de preto e passou a fazer parte das pessoas de Elena. Agora ele conhecia a perda e os seus olhos estavam cinzentos e melancólicos como eram cinzentos e melancólicos os olhos de Elena. Agora ele era um deles.
E aqui começa a história da vida secreta de Edward Strange.

9 comentários:

katrina a gotika disse...

Muito obrigada.
A história acaba aqui. :)

Goldmundo disse...

Não necessariamente. Acaba talvez a narração dela.

katrina a gotika disse...

Silver Bullet (tarde porque as pilhas andam fracas):

Nãopercebo a tua questão.
A história passa-se algures no Reino Unido. Qual é probabilidade de encontrares um pastor protestante chamado Zé Tó? Pois, bem me parecia.
Para adaptar a história ao nosso país (só de pensar nisso é deprimente), teria de substituir o pastor (portestante) por um padre. Ao fazê-lo, a história ia levantar e envolver questões paralelas que iam desviar o assunto para questões que não estou minimamente interessada em debater.
Até pode ser que um dia escreva histórias ficcionais passadas neste país. Quando ele me inspirar, sei lá. Mas este país só me inspira a escrever histórias rocambulescas mas infelizmente verdadeiras.

Um conselho, não questiones o artista sobre os temas e a forma em que escreve. O artista é que sabe. Se o artista gosta de azul não lhe digas para pintar a amarelo.

As pessoas cansam-me.

the dreamer disse...

Vai haver capítulo com a história de Edward?

katrina a gotika disse...

Não.

Goldmundo disse...

Todos nós escrevemos, às vezes a Noite escreve pelas nossas mãos. Isso aconteceu aqui.

Dark kiss, Milady.

Vítor Mácula disse...

Cara Gotika.

Não, a estória não acaba aqui. Essa é uma das perturbações dos escribas: sabem que o que lançam segue a sua viagem crescendo para além deles, e também para além do dizível. A escrita é uma temível actividade.

Quanto à estória aqui – não sei bem o que dizer… Talvez os paroquianos do Edward a seu modo vivam também (n)isso. E os não paroquianos do Edward e os não frequentadores do Oblivion também (bem, estes não sei muito bem quem sejam, quero dizer, se é possível haver não frequentadores, porque todos esquecemos o que somos ou donde somos, mas pelo menos os que não sabem ou não decidiram frequentá-lo – e esta da decisão é fulcral de significado, precisamente como se vê com o Edward). Porque eu não sei muito bem se é possível haver luz sem trevas; entro aqui numa zona mística a que… (silêncio).

Ou talvez seja da fase que vivo (e quando raio não é assim?...)

Na melancolia está tudo distante e simultaneamente íntimo – daí a beleza, e daí também o aprisionamento. Há uma provação na melancolia. Também a beleza terei de abandonar, dizia-me um amigo já há uns anos. E penso que ainda não a abandonou – e se é que é verdade que a terá de abandonar… (silêncio).

O amor… (silêncio).

E dito isto – que não acrescenta nem retira nada à estória, ou por outro lado… (silêncio) – vou deixar a estória crescer em mim. Aproveito para dizer que te vou linkar. É o que dá escrever estórias destas ;)

Um abraço.

Anónimo disse...

passei por aqui e não pude deixar de te fazer uma grande vénia, porque de facto, escreves com magia, danças com as palavras, fazes amor com elas.
quanto a Portugal...tenho que concordar contigo.
este país só me inspira tristeza e traz lágrimas...

espero que tornes a este blog e nos brindes com a tua arte!


† Antígona †

Peter Cain disse...

Gotikka,

Esta história pareceu-me, apesar de alguma carga alegórica, e de um ritmo um pouco apressado,tocante e rica.
Não sei se este tipo de crítica te interessa, como se respondesse a uma pergunta que não fizeste, mas deixo apenas a minha opinião e o desejo de ver coisas novas tuas.